Pernambuco de fora pra dentro: Festivais de Cinema além das fronteiras da RMR
Festival de Cinema no Sertão, Agreste e Zona da Mata
Letícia Barbosa
28 de agosto de 2023- 16:00
“É quando as emoções viram luz e sombras e sons, movimento” … assim descreve o Cordel do Fogo Encantado a chamada sétima arte em O amor é filme, música que fez parte de uma das mais importantes obras audiovisuais pernambucanas, Lisbela e O Prisioneiro (2003), de Guel Arraes. Para além do filme, cinema é também o espaço em que pessoas vivem juntas a experiência de assistir, rir, chorar, sentir, refletir a um mesmo produto cultural. Cinema é também instrumento de formação, de representação, de autorrepresentação, de leitura de uma época.
Os festivais, por sua vez, são importantes formas de difusão e fortalecimento para a expressão cultural cinematográfica. Cada vez mais diversas e mais descentralizadas, as mostras de filmes são lugares de expressão para diretores, realizadores, produtores culturais, bem como de outros, outras e outres trabalhadoras da economia criativa ocuparem. Em Pernambuco, este tipo de evento costuma ter bastante aceitação do público e encontra terreno profícuo para prosperar. Deixando as fronteiras do Recife e avançando pelas regiões mais afastadas do litoral, encontramos uma galera que vem se movimentando para garantir a existência e resistência de festivais de cinema que recebem produções do Brasil e até do mundo.
Afogados da Ingazeira - Sertão do Pajeú
O Sertão do Pajeú é como se intitula a formada por 17 municípios da região sertaneja de Pernambuco. Entre as localidades, está Afogados da Ingazeira, um importante polo econômico e cultural da micro região. É lá que ocorre a Mostra da Diversidade Sexual no Sertão do Pajeú. Em sua segunda edição este ano, em 2023, a mostra tem realização da produtora Xerém Produções, encabeçada por Lúcio Vinícius e Rafaela Albuquerque. O evento ocupou o imponente Cine São José entre os dias 23,24 e 25 de agosto, além de contar com oficinas e apresentações artísticas.
(Imagens: Reprodução/ Redes Sociais)
O festival é o segundo do estado com a temática LGBTQIPNA+, fazendo par com o Recifest, que acontece na capital pernambucana. Léo Lemos, assessor de comunicação do evento, enfatiza a necessidade de haver um festival como este: “Ocupar e resistir é o lema. Se nós temos um cinema de rua, por que não ocupar e utilizar para fomentar o cinema LGBTQIPNA+ ?”
“Este projeto surgiu com objetivo de proporcionar maior visibilidade a todes trabalhadores LGBTQIA+ do audiovisual, porque cinema é ferramenta importante para expressar a potência e a diversidade desse movimento”, destaca Lúcio Vinícius, produtor executivo do evento. Sobre o processo de curadoria, Lemos destaca que entre os 137 filmes inscritos, 15 foram selecionados e deram o tom para organização de cada dia de exibição. Entre os temas, a morte, o tremor e a dor aparecem ao lado da vida, da dança e do mover-se. Ele explica que apesar das peculiaridades de cada uma, as produções dialogam em torno de demandas gerais da comunidade: o que o público LGBTQIAPNA+ deseja é respeito, é viver a vida como quer. Esses desejos, anseios que são internos, mas também são gerais estão presentes. São filmes que falam da dificuldade, mas da alegria de viver. Filmes que falam da própria resistência [do existir para esse grupo]”
Caruaru - Agreste
A conhecida capital do forró de Pernambuco localiza-se no agreste do estado e conta há 10 anos com o Festival de Cinema de Caruaru. De acordo com Edvaldo Santos, idealizador e um dos curadores do festival, o evento é o primeiro do tipo na cidade e foi responsável por iniciar a carreira de cineastas e produtores locais na área.
O Festcinecru ocorreu entre os dias 21 e 26 de agosto deste ano, no Teatro João Lyra Filho e contou com uma programação de filmes distribuídos em 5 mostras, entre produções nacionais e internacionais. Entre as mostras, a nomeada Agreste, que integra o festival desde seus primeiros anos, dedica-se a realizadores da região dentro do estado, bem como fora dele.
(Imagens: Divulgação)
A proposta da Mostra Agreste é identificar tanto a força de outras manifestações culturais, para além das já conhecidas, como o cinema, assim como dar visibilidade para uma região plural, mas que se conecta com outros estados. “Não somos interior, nem interiores, somos Caruaru, Riacho das Almas, Agrestina, somos culturas distintas que precisamos ser identificadas”, completa o curador.
Aliança - Zona da Mata Norte
Entre os dias 4 e 6 de agosto, Aliança recebeu a primeira edição do Cine Catita. Em formato itinerante, o festival ocupou três pontos diferentes do município privilegiando espaços de cultura popular, escola pública e zona rural, sempre em locais abertos. “O Cine Catita é o primeiro festival de cinema de Aliança e com ele movimentamos o comércio local e a própria rotina da cidade”, conta Lori Queiroz, produtora cultural e idealizadora do Catita. Sobre a filmografia, Lori explica que foram priorizados os filmes produzidos em Pernambuco e na Paraíba. “Nossa intenção foi trazer para tela a realidade mais próxima possível da população de Aliança”, complementa.
(Imagens: Divulgação)
Sobre as realizações feitas fora da Região Metropolitana e, principalmente, longe do contexto das produções importadas, ela destaca: “o filme Leôncio, gravado na cidade de Aliança, trouxe o olhar que é possível fazer cinema nas cidades do interior. A população reconheceu vários personagens e casas da cidade, quebrando um pouco aquela ideia que só existe filme feito em Hollywood com altos cachês e histórias irreais. Eu amo o cinema de Hollywood, mas é bem distante de nossa realidade.”
Acerca do Financiamento - A cerca da burocracia e da administração
Para Léo Lemos, o incentivo para esse tipo de evento é fundamental, principalmente, fora do eixo Sul-Sudeste. “É difícil que empresas privadas patrocinem cultura fora do clichê”, comenta ele. O comunicador enfatiza que o apoio financeiro costuma ir para grandes cantores já consolidados ou com apelo mais comercial. “Dificilmente há patrocínio para eventos tão segmentados. Dessa forma, é necessário o financiamento público”, analisa. A Mostra de Cinema da Diversidade no Sertão do Pajeú recebeu pela primeira vez este ano recursos do Governo do Estado de Pernambuco, pelo Fundo Pernambucano de Incentivo à Cultura (Funcultura). Com os recursos, foi possível ampliar a divulgação e a oferta de atividades, como as oficinas.
O Cine Catita, por sua vez, já estreou como contemplado do edital na categoria “Revelandos”, voltada para os projetos iniciantes. Lori conclui a conquista como um desafio superado: “O Funcultura é bem exigente e burocrático, então é preciso ter bastante atenção em relação aos prazos, pagamentos e emissões de notas fiscais, foi um desafio grande para todos que estavam na produção do evento”. O outro lado dos trâmites burocráticos dos editais de financiamento público para produções culturais é analisado por Edvaldo. De acordo com o Cineasta e curador, “A burocracia é necessária para ter o mínimo de organização da execução com o dinheiro público para que haja transparência.”
(Imagens: Divulgação)
Para ele, porém, a regularidade e a administração dos recursos são fatores a serem otimizados. “A gente precisa de organização de datas. Este ano tivemos atraso de datas, o que trouxe dificuldade de organização e das produções”, desabafa ele. Duas das edições do Festcinecru foram realizadas sem que Edvaldo conseguisse ser aprovado pelo Funcultura e a solução foi contar com a iniciativa privada. Assim como ele, Léo Lemos também indica que, uma vez com os recursos públicos, o evento torna-se mais rico e tem maiores possibilidades de sustentabilidade.
Interior, não! Afogados da Ingazeira, Aliança, Caruaru…
Cada um dos festivais têm em comum o locus fora da Região Metropolitana do Recife e a vontade de enaltecer seu território e sua população. Além disso, criar espaços para fomentar a sétima arte localmente. Para isso, os três promoveram oficinas gratuitas dentro da temática de produção cultural. Outro aspecto é a movimentação da economia local, seja ela criativa quanto pela atração de turistas e a utilização de outros serviços necessários para a existência dos eventos, como alimentação e vestimenta, bem como a contratação de mão-de-obra da região.
Convergências à parte, cada um dos eventos retratados aqui enfatizam peculiaridades de seu lugar e a relevância de fincar suas próprias manifestações culturais como forma de trazer visibilidade para cada cidade em si, combatendo, em alguma medida, a visão de um “interior do estado” como algo homogêneo. De acordo com Lori, sua vontade de criar o Cine Catita veio de um exibição de filme que realizou em uma escola pública, pela qual constatou que nenhum dos estudantes teriam pisado em uma sala de cinema. O Catita é hoje o primeiro festival de cinema de Aliança e contou com filme gravado na própria cidade.
(Imagens: Divulgação)
Na região sertaneja, o estereótipo da aridez da terra e de seus moradores é subvertido pelo conjunto de sessões que reuniu uma filmografia com temática LGBTQIPNA+ e/ou por realizadores dessa comunidade. Afogados da Ingazeira já tem se destacado em relação à efervescência cultural e também pela atuação de grupos de movimentos sociais, além de ser um pólo de razoável influência na região do entorno. Neste cenário, abrigar um festival com essa segmentação, sendo o segundo do estado, é um passo a mais para perturbar estigmas sobre os tipos humanos da região.
O tema é mais manifestado por Edvaldo, representando um festival de cinema em um município conhecido pelas artes manuais e pela música. O Festcinecru se mantém, entretanto consolidado, atraindo mais público e oferecendo mais atividades. “Caruaru não é só o barro, mas há também uma diversidade cultural”, explica ele. Para Edvaldo, é importante pontuar, não só geograficamente, mas colocar o agreste e seus municípios como polo cultural que se diferencia do litoral e do sertão. “ A gente tem uma visão que depois da capital é interior, e é um balaio só, e na verdade não é”, conclui.
Ocupar e Resistir
Seja em Cinemas “de rua”, em cine teatros, espaços culturais ou literalmente na rua, os festivais de cinema são essenciais dentro de um movimento de valorização dos equipamentos públicos de lazer e democratização do acesso à cultura. O Cine Teatro São José, localizado em Afogados da Ingazeira, foi inaugurado em 1942 sob o título de Cine Pajeú. Entre fechamentos e reaberturas, o espaço hoje é cenário de uma pluralidade de eventos, garantindo sua resistência e constante ressignificação para seu entorno.
Já o Teatro João Lyra Filho, tem 51 anos de resistência, sendo hoje propriedade particular, porém administrada pela Associação de Artistas de Caruaru. Devido às circunstâncias de posse, o equipamento cultural encontra-se carente de reformas estruturais e é, assim, alvo de debate pela sua municipalização. O Cine Catita, por sua vez, ocupou durante sua realização a Associação de Maracatus de Baque Solto de Pernambuco, a Rua Joaquina Lira, em frente a uma escola pública, no centro de Aliança e o Ponto de Cultura Estrela de Ouro, localizado na Chã de Camará, Zona Rural da cidade.
O lema “Ocupar com cidadania, afeto e cultura”, como incita Léo Lemos, parece nortear a execução desses festivais. Para Edvaldo Santos, há uma “ideia elitista de que a cidade é violenta e perigosa quando ela é [na verdade] a parte mais profícua da cultura”. “Drama, aventura, mentira, comédia romântica” ou ainda documentário, animação, experimental os festivais de cinema de Pernambuco, na Região Metropolitana, na Zona da Mata, no Agreste ou no Sertão são pura potência de fortalecimento identitário, de movimentação econômica e de valorização dos nossos lugares de história.
Salve o Cinema Nacional! Salve o Cinema de Pernambuco! Salve o Cine Teatro São José! Salve o Teatro João Lyra Filho! Salve os pontos de cultura popular! Salve o direito à cidade! e também Salve o São Luiz!