“Retratos Fantasmas”, de Kleber Mendonça Filho, é uma carta de amor ao cinema, à cultura e ao Recife; leia a crítica completa
O filme trabalha, de maneira minuciosa, os aspectos mais profundos que permanecem na cidade apesar das transformações ao longo dos anos
Genivaldo Henrique
15 de agosto de 2023- 13:40
Carros a toda volta, pontes e rios que cortam a cidade, milhões de pessoas andando, de um lado para o outro, cuidando de duas próprias vidas. Parece, ao olho destreinado de alguém que não está acostumado com o Centro do Recife, que há uma desordem nisso tudo, uma bagunça sem fim… Mas não para Kleber Mendonça Filho. Em “Retratos Fantasmas”, o diretor, roteirista - e, em algumas ocasiões, como nesta, até ator -, apresenta um ponto em comum a todos os transeuntes dessa metrópole que nunca para: o Cinema.
Em “Retratos Fantasmas”, Kleber faz um apanhado dos seus filmes anteriores para trazer uma nova perspectiva para as histórias do passado e as que ainda podem ser contadas na capital. O diretor se utiliza do gênero documentário para narrar a ascensão, a decadência e o renascimento- em todos os sentidos possíveis - do Recife. A cidade, que pode até parecer, há muito, esquecida, mas o cineasta sempre deixa claro que alguns ainda irão sempre relembrá-la e homenageá-la, não importa o momento.
O Recife que nunca para
O filme começa com uma reflexão sobre os primeiros anos da vida de Kleber no Recife. O ponto de partida é no bairro de Setúbal, na Zona Sul do Recife, em seu primeiro e único apartamento na cidade. A proprietária era a sua mãe, Joselice Jucá, que comprou o imóvel que representava um “recomeço” para a família após o divórcio com o pai do garoto, também chamado Kleber Mendonça.
Esta primeira parte, intitulada “O apartamento de Setúbal”, inaugura o ritmo frenético e, ao mesmo tempo, calmo do longa, com imagens e gravações do passado misturadas a cenas de outras obras do diretor - como Som ao Redor (2013), que se passa no apartamento - e capturas do presente, que deixam claras as mudanças que o tempo empregou àquele local. O diretor narra os principais acontecimentos de sua infância, adolescência e início da vida adulta, perpassando pelo seu desejo inicial por fazer cinema e a influência que sua família teve para que isso se tornasse realidade.
O apartamento é, portanto, uma bela e bem trabalhada metáfora para todas as inconstâncias que o passar dos anos podem apresentar, mas que, através do olhar de Kleber, deixam uma ideia de recomeço importante que é explorada no decorrer do filme. Nesta primeira parte, os primeiros fantasmas são construídos, estejam eles em retratos ou única e exclusivamente na memória do diretor, como o latido incessante de Nico, que não cessa mesmo após sua morte.
Assim, não só a antiga casa do diretor se torna, de pontapé, um dos personagens do longa. O olhar único de Kleber a respeito da própria memória também.
Os tempos de antigamente que não voltam mais
Ainda durante as divulgações do filme, Kleber fez questão de disponibilizar um trecho no qual fala: “Eu amo o Centro do Recife… Tem um clima de quem foi abandonado sem grandes explicações”. Esta é uma das passagens mais marcantes do filme, principalmente para quem reside na cidade e provavelmente entende o sentimento perfeitamente. Mas, como capturar essa exata sensação em tela?
Após um início focado nos primeiros 20 anos de sua vida, Kleber direciona o seu olhar para a sua maior paixão: o cinema. Na segunda parte do documentário, que se chama “Os cinemas do Centro do Recife”, o diretor leva às telas diversos pontos históricos da capital, como o Cinema São Luiz, Veneza, Moderno e Art Palácio, que antes recebiam centenas de milhares de pessoas e circulavam as principais zonas de riqueza da cidade, agora estão abandonados no tempo - assim como o próprio Centro.
(Imagens: Divulgação/ Arquivo)
Kleber mostra as trajetórias dos principais cinemas do Recife, do início - cheio de incertezas por serem ainda uma “novidade” -, passando pela ascensão - marcada pela glória que um fenômeno pode exigir -, até chegar à decadência - com toda a força e significados da palavra. Se antes esses espaços recebiam milhares de pessoas e eram referências para todo o Brasil, agora eles viram shoppings, lojas de eletrodomésticos e até igrejas evangélicas… morrem e renascem com a face de um fantasma do que já foram e do que poderiam ter sido se tivessem recebido um tratamento melhor.
O emprego de imagens de arquivo, inclusive, são um ponto marcante para o filme, essenciais para a progressão da narrativa, que toma espaço em qualquer momento, do Recife Antigo ainda cortado por bondinhos, até os trilhos vazios e abandonados de hoje em dia. Esse recurso, inclusive, explicita exatamente o ponto da segunda parte, protagonista perante as outras, por mostrar a paixão que o diretor possui pelo Centro da cidade e as diversas maneiras que existem para se contar uma história de amor, transformações e abandono.
Para exibir isso, a ambientação do filme é praticamente perfeita. As ruas do Recife representada na tela possuem a mesma energia caótica do “mundo real”. Kleber escolhe a saturação certa, até em imagens de arquivo, para mostrar as pessoas de cada período histórico mostrado, além de todas as suas emoções e sensações, da alegria à tristeza e saudade ou do calor ao frio iminente que somente o clima da capital reserva.
A contextualização do “Recife Antigo” - no melhor sentido da expressão - com o “Recife Novo”, atual e moderno, deixa um gosto um tanto quanto amargo na boca, já que transformações deste tipo sempre acontecem e são comuns a todos. Os cinemas tão amados por Kleber e por tantas outras pessoas ou não existem mais ou não recebem o tratamento que merecem - como o São Luiz - e os seus legados deixam marcas, pintadas a ouro, na memória do diretor e de todos os que viveram as sessões do meia-noite no local: saudades dos tempos de antigamente que não voltam mais e uma angústia pelas transformações que não parecem parar nunca.
Vida, morte e renascimento
Ao trabalhar as mudanças que o tempo traz, tanto para si mesmo, quanto para o Recife como um todo, com um enfoque no Centro da cidade, Kleber direciona seu olhar único e sensível para o renascimento desses cinemas, os tratando como centros religiosos na terceira parte, “Espíritos e Igrejas”. A reflexão parte da ascensão das Igrejas Evangélicas no Brasil a partir da década de 80 e 90, que chegaram, inclusive, a comprar alguns cinemas na capital pernambucana para transformar as salas em pleitos de oração.
Ao abordar esse “renascimento” dos cinemas de outrora do Recife como antros religiosos, Kleber não só explora, mais uma vez, o teor amargo que a mudança traz, mas também presta críticas ao sistema que corrobora com acontecimentos deste tipo, que valoriza o lucro acima da arte e da tradição.
O Veneza, por exemplo, que antes era palco dos maiores filmes que chegavam à cena pernambucana, virou um shopping, deixando a sala em segundo plano com relação aos pontos comerciais, até o seu fechamento. Uma metamorfose estranha, tratando o cinema como um “hospedeiro”, adjetivo utilizado pelo próprio diretor em determinado ponto. Assim, o ponto que o cineasta tenta passar é que o problema não está nas transformações ou nos “tempos de antigamente que não voltam mais”, e sim em como e porquê essas mudanças acontecem.
(Imagens: Divulgação)
Ainda assim, a genialidade de Kleber impressiona pelo fato de que pode, em poucos instantes, passar de uma crítica embasada, concreta e particular, até a mais pura e singela homenagem a essas salas. A ironia que ele traz nessa terceira parte, ao tratar as salas como templos, os recortes históricos travestidos em novas progressões. Salas que nasceram, viveram, morreram e renasceram como fantasmas em meio a louvores.
‘Os fantasmas que habitam em mim’
Em “Retratos Fantasmas”, Kleber trabalha, de maneira brilhante, as assombrações que habitam no Recife. Os tempos que já passaram, como a vida que tinha com a sua mãe ou as antigas salas que frequentava quase que religiosamente dos 13 aos 25 anos, assim como tudo que é vivido hoje em dia e no que pode acontecer daqui para frente. É, de fato, uma reflexão amarga em dados momentos, mas necessária, com um olhar crítico sobre as transformações da cidade, do modo de viver e de produzir, mas que reserva um pouco de esperança, não nos órgãos ou instituições, e sim nas pessoas.
Os fantasmas do Recife habitam em Kleber e Kleber habita em meio a esses assombros, assim como todos os recifenses. Para lidar com isso, o diretor faz seus filmes. Desde a adolescência, até hoje, a arte parece puxá-lo para a realidade e ampliar seus horizontes para as histórias mais diversas que podem acontecer na capital. Foi assim em Som Ao Redor (2013), Aquarius (2016) e até em Bacurau (2019) - que se passa no interior, mas traz reflexões sobre tradição e ancestralidade em meio ao esquecimento - e esse sentimento é retratado de maneira ainda mais forte no novo filme.
“Retratos Fantasmas” é uma carta de amor, escrita com pesar, mas com esperança no olhar, ao Recife e à cultura pernambucana.
(Imagens: Divulgação/ Arquivo)