Fim de semana no Paraíso Selvagem: a disputa de território é tema do novo filme de Pedro Severien
Com trilha sonora ao vivo, o longa fez sua estreia comercial no Teatro do Parque
Guilherme dos Santos e Luíza Bispo
14 de dezembro de 2023
Paraíso: um ambiente tropical, com coqueiros, praias, peixes e um belo contraste entre o azul da água e o verde das árvores e das plantas. Seria um lugar perfeito e completo, não fosse a parasitação de indústrias e construções que figuram o local. São esses elementos intrusos que representam o ‘Novo Paraíso'. É nesse cenário de disputa que o filme Fim de Semana no Paraíso Selvagem, que teve estreia comercial no CineTeatro do Parque no dia 7 de dezembro, se desenvolve.
(Imagens: Reprodução/ Trecho do Filme)
É por meio dessa composição tão habitual nas cidades pernambucanas que estão à face do neoliberalismo que se desdobra o longa-metragem dirigido pelo recifense Severino (Todas as Cores da Noite, 2015, e Loja de Répteis, 2014). Especulação imobiliária, disputa de território, resistência e cultura periférica, por meio de uma ficção dotada de realismo poético e experimentações constituem o enredo. A trilha sonora composta e interpretada honrosamente pelo pianista em ascensão Amaro Freitas foi ainda mais valorizada quando tocada ao vivo, um privilégio de ambientação sonora aos espectadores que puderam comparecer ao lançamento.
Uma trama de eternas descobertas
A protagonista do longa é Rejane (Ana Flávia Cavalcanti), uma médica legista que volta a Paraíso, vilarejo onde passou a infância. Seu retorno se dá para resolver burocracias no nome de seu irmão, Rodrigo, que morreu, supostamente, por afogamento. Nessa jornada, o que a médica encontra são segredos, disputas e planos bem articulados de controle por parte da elite que ocupa cada vez mais o lugar. Quanto mais ela descobre detalhes da vida pessoal e profissional do irmão e do que acontece nos entornos da cidade, mais Rejane se vê imersa numa teia de ganâncias e mistérios.
(Imagens: Reprodução/ Trecho do Filme)
Pouco a pouco, conseguimos desvendar mais o enredo enigmático. Com a introdução da personagem Naná, em uma interpretação da excepcional Zezé Motta, descobrimos que Rejane, o irmão e a mãe sofreram com o avanço do complexo industrial-portuário dentro de Paraíso e, assim como outras famílias, foram despejados violentamente devido às construções no local. A mãe, ativista, foi uma vítima desse processo e acabou sendo morta baleada em um dos confrontos. Enquanto a trama se desenvolve, outros personagens importantes são apresentados, como o filho de Rejane e o companheiro do irmão falecido. O suspense da trama se baseia na desconfiança da protagonista sobre a causa de falecimento de Rodrigo após a aparição de personagens sinistros e vilanizados, que compõem uma caricatura da elite brasileira. Diante disso, não há realmente um clímax que justifique o curso da trajetória, ou um acontecimento que dê sentido ao desenvolvimento do longa, deixando o espectador sair da sala de cinema com vários questionamentos sobre conexões que não foram feitas e tramas pouco desenvolvidas.
(Imagens: Reprodução/ Trecho do Filme)
Uma surpresa muito bem-vinda e um dos pontos altos do filme é a participação das artistas Bione e Mc Boneka, em uma cena que representa bem a cultura e a resistência periférica, a partir de uma performance de rap feita pelos moradores da parte fora do mundo imobiliário e elitizado onde se localiza a trama. Com versos pertinentes e afiados, a sequência traz consigo vivências de quem se encontra à margem da sociedade a partir de corpos negros, de periferia e com sede de mudança. O destaque fica por conta da fotografia que, orquestrada por Beto Martins, nos apresenta a um início de noite íntimo em um morro de Paraíso. Composta por tons frios e uma pegada naturalista, toda a construção imagética da obra, aliás, somada com os toques melódicos do piano de Amaro Freitas, constroem uma paisagem dramática e sufocante, apontando a todo tempo para o gênero noir, dando indícios - que descobrimos serem falhos - de que algo grandioso será revelado sobre aquela população mesquinha.
Trailer do filme:
O cinema de Severino
Se você é residente da Região Metropolitana da cidade e entusiasta da cena audiovisual local, é possível que já conheça o trabalho do diretor da obra. Severino, nome artístico recém adotado por Pedro Severien, é professor substituto na UFPE (Universidade Federal de Pernambuco), produtor audiovisual e ativista. Um importante defensor da luta pelo direito à cidade, ele esteve engajado ativamente no movimento Ocupe Estelita (MOE), que mobilizou a sociedade civil recifense e grupos socioculturais na defesa do marco histórico da cidade, o Cais José Estelita, contra sua demolição para a construção de aristocráticos prédios residenciais e comerciais, parte de um projeto do consórcio de grandes construtoras e do Novo Recife.
Com o lema “A cidade é nossa. Ocupe-a”, o MOE clamava por uma cidade com participação popular e vivências coletivas nas tomadas de decisões judiciais, onde a população tivesse direito de circular e habitar espaços públicos e culturais. Pedro foi um personagem fundamental nessa luta, tendo participado da produção e direção de um agrupamento de clipes, filmes e curtas-metragens coletivos com objetivos sociopedagógicos e educacionais sobre o Estelita e a dominação neoliberal no Recife. (Fica a recomendação, inclusive, do videoclipe Novo Apocalipse Recife)
Só de conhecer um pouco a história do movimento Ocupe Estelita, conseguimos entender as temáticas constantes na atuação política do diretor, que ele nunca deixou de trazer para seu cinema. Tendo início em seu planejamento há oito anos atrás, em 2015, poucos anos após o início do MOE, Fim de Semana no Paraíso Selvagem aborda uma crise urbana que não é desconhecida aos moradores do Estado. Essa situação é a realidade nos municípios de Ipojuca e Cabo de Santo Agostinho, por exemplo, cidades onde o longa foi gravado, e que até hoje sofrem com as instalações do Complexo industrial portuário de Suape.
(Imagens: Reprodução/ Redes Sociais)
Não à toa, a temática de especulações imobiliárias e os consequentes confrontos com a elite (relação oprimido x opressor) é recorrente no novo cinema pernambucano. Proposital ou não, a obra de Severino tem um ‘quê’ de Kleber Mendonça, até mesmo na introdução dos antagonistas, vide a misteriosa e suspeita aparição de Maristela (Joana Medeiros) e diálogos tensos que parecem pouco esclarecer, também presentes em Som ao Redor (2012) e Aquarius (2016), longas aclamados de seu conterrâneo.
O final de Fim de Semana no Paraíso Selvagem, por sua vez, é justo com aquilo que se propõe retratar. A trama se encerra em um confronto entre as classes, abrindo brecha para a imaginação e conclusão daqueles que assistem. Esse, afinal, não é o que vivemos hoje? Sem saber qual o destino dos embates infindáveis entre o avanço da especulação imobiliária e a defesa dos territórios, só podemos torcer (e lutar) para que Rejane e o povo vençam essa batalha.