Resistência e subversão: um panorama do cenário drag recifense pós pandemia
Luíza Bispo
24 de Setembro de 2023- 12:00
Tudo o que a arte drag faz é borrar os limites de gênero e criar arte. É assim que Bob the Drag Queen, artista e vencedora da oitava temporada do reality show 'RuPaul's Drag Race', define a arte drag. Para ela, a arte de se montar vai além das áreas de entretenimento - tais como performances, festas e atos de comédia, diretamente associadas de forma imediata a drag queens -, o que define essa forma de expressão artística é simplesmente seu poder de provocação e manifestação de liberdade, desafiando as imposições sociais pré-estabelecidas de gênero.
RuPaul Charles, ou simplesmente RuPaul, figura mais notória do cenário drag a nível mundial, responsável também por criar e idealizar o programa televisivo citado anteriormente, possui posicionamentos parecidos a respeito das ordens de subversão da sexualidade presente na própria existência dessas artistas. Em uma entrevista de 2018 ao The Guardian, importante jornal britânico independente, RuPaul comenta: 'É uma posição sobre identidade, que é realmente a coisa mais política que se pode conseguir. (A arte drag) Tem a política em seu cerne, porque trata de: como você se vê neste planeta? Isso é altamente político. Trata-se de reconhecer que você é um Deus vestido de humanidade e que pode fazer o que quiser. É isso o que nós, que fomos pequenas crianças caluniadas e condenadas ao ostracismo, descobrimos. (...) é como se eu não me importasse, sou um metamorfo, vou voar por aí e usar todas as cores, e não me marcar com apenas uma cor.'
Ambas as afirmações reiteram a mesma percepção: drag é inerentemente político e transgressor, quase como se fosse um ato comunicativo não necessariamente verbal de exercício de resistência. Cerca de meio século após a Revolta de Stonewall de 1969, marco central na história da luta de pessoas LGBTQ+, e alguns anos depois do lançamento do importante documentário 'Paris Is Burning' (1990), que retrata a cena drag nova-iorquina em meados dos anos 80, a estreia de RuPaul's Drag Race em 2009, atualmente em sua 15ª temporada regular, sem contar os spin-offs da franquia, trouxe uma nova era de presença e aparição de drag queens na mídia. Hoje, em 2023, vemos tais artistas habitando cenários de grande proporção, seja na música, no cinema, na passarela, falando de política e sociedade na internet, em redes sociais, em streaming de jogos e por aí vai. Anos antes, essas circunstâncias pareciam improváveis devido à normatização de uma cultura de extrema marginalização e ridicularização de quaisquer indivíduos que exerçam a não-conformidade de gênero.
Mesmo que o programa de competição de RuPaul não represente toda a diversidade e possibilidades diferentes de se fazer drag (vide a notável falta da presença e participação de drag kings/queers), esse produto inegavelmente foi e continua sendo um dos maiores fomentadores dessa cena, responsável por trazer uma grande visibilidade ao movimento LGBTQ+ nas duas últimas décadas.
Foi assistindo ao reality que Allura Nox, nome in drag de Luan Queiroga, se afeiçoou por espetáculos e todo o universo de drag queens aos doze anos de idade, tendo se montado pela primeira vez aos dezessete ou dezoito anos em um evento da escola. Em 2019, utilizando a experiência e conhecimento que acumulou nesses anos anteriores em que se montava ainda como amadora, Luan percebeu que gostaria de subir aos palcos e fazer tudo aquilo profissionalmente, dando assim luz a Allura.
(Imagens: Reprodução/ Redes Sociais)
Allura conta que seu nome vem de origem francesa e significa algo como 'encanto', 'fascínio', 'atração', baseado no substantivo 'allure'. A escolha de seu nome foi uma espécie de profetização com a carreira e vida artística da drag queen, que em pouco tempo cresceu bastante na cena recifense, tendo de cara ganhado o primeiro concurso em que participou, o Lip Sync Battle de Pernambuco, em 2019. 'Eu sempre brinco e digo que já cheguei no mundo drag muito forte!', afirma contente. Foi depois desse feito que a queen foi convidada a fazer parte da 'House of Nox', adotando o sobrenome Nox e adentrando à família composta por Amber Nox, Diesel Nox e Ruby Nox.
Nesse contexto, os termos 'house' ou 'casa' se referem a um grupo de drags que se unem como uma família para oferecer apoio e orientação a outras artistas. Essas casas são lideradas por uma figura materna mais experiente e respeitada, responsáveis por liderar seus filhos e filhas em seu crescimento e desenvolvimento criativo e artístico, detendo um nome, identidades e estética própria. Isso teve início na cultura de baile norte-americana chamada de ballroom, onde pessoas que viviam em situações vulneráveis, em sua maioria a população negra e trans, eram adotadas por outros LGBTQ+ mais velhos que os introduziam à comunidade e aos bailes, como uma forma de rede de apoio.
(Imagens: Reprodução/ Redes Sociais)
Top Drag Pernambuco
Com a ajuda da House of Nox, Allura conseguiu se preparar e vencer o Top Drag Pernambuco de 2021, maior concurso para drag queens do Estado. Foi em 2021 que ela voltou aos palcos, após o difícil período de pandemia em que boates, casas de show e outros locais de apresentação tiveram que ser fechados devido ao Covid-19, fazendo com que muitas dessas artistas perdessem uma grande fonte de renda e de trabalho. Mesmo com o fim da crise de saúde emergencial, a cena drag de Recife (e todo o país) ainda segue em crise.
(Imagens: Reprodução/ Redes Sociais)
Maria das Ditas, nome inspirado pelo álbum 'Erotica' da Madonna, ou também Dita Dura, outra drag queen que está inserida na cena recifense a mais tempo, relata as dificuldades que essas artistas estão enfrentando após o cenário pandêmico. Tendo se montado pela primeira vez aos dezoito anos lá em 2015, Dita afirma ter vivenciado o 'boom' do mundo drag durante os anos de 2016 até 2018. Segundo ela, graças ao estouro de RuPaul's Drag Race e a ascensão de artistas como Pabllo Vittar, drag queens eram requisitadas em todas as festas por produtoras e não faltavam oportunidades.
'Naquela época, a gente tinha uma coisa que não temos hoje que é poder de compra. A gente ia com cinquenta reais para uma festa e era bem divertido, hoje em dia isso é só o dinheiro do Uber de ida e volta e em alguns lugares é o preço só do ingresso. Não que fosse perfeito, mas nesse tempo as drags tinham dinheiro pra comprar maquiagem barata, pra fazer uma roupa legal, pra frequentar essas festas, e os produtores de festas também tinham dinheiro pra fazer o rolê deles, pagar as artistas e sustentar uma rotatividade. No ano de 2018, principalmente, houve um novo boom de drags. Quando começou o novo governo, em 2019, a gente ainda conseguiu levar, mas em 2020 as coisas complicaram de vez', relembra.
Ela conta que dos anos de 2021 e 2022 até o momento atual, drag queens e kings estão vivenciando uma outra realidade econômica. As próprias produtoras de festas e os donos de casas de shows estão passando por dificuldades para realizar eventos acessíveis, levando em conta que o preço de tudo triplicou após a deflação da economia. De fato, dados divulgados pelo Índice Nacional de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA) indicam que nos 12 meses entre agosto de 2022 e agosto de 2021, houve um salto de 9,68% no aumento dos preços. Nesse meio tempo, a renda média do trabalho caiu 6,6%, segundo o PNAD. Dessa forma, o poder de compra do cidadão brasileiro caiu de forma devastadora, prejudicando a rotatividade e frequência em quaisquer eventos artísticos.
(Imagens: Reprodução/ Redes Sociais)
Não obstante, o governo Bolsonaro foi responsável por desestruturar o Ministério da Cultura no país, tendo-o transformado em apenas uma secretaria dentro do Ministério do Turismo. Para melhor noção, os investimentos em projetos culturais tiveram uma queda de 63% no ano de 2022 em comparação a 2018, levando ainda cerca de onze semanas a mais que antes para ser avaliado e aprovado, conforme o Portal da Transparência e Lei de Incentivo à Cultura. Inegavelmente, não apenas drags mas artistas de todo o país sofreram e estão sofrendo uma espécie de crise, devido a falta de apoio e incentivo governamental para a divulgação de seus projetos e trabalhos.
(Imagens: Divulgação/ Maria do Céu)
Em tom otimista, porém, Maria do Céu, nome conhecido entre o público LGBTQ+ de Recife por ser dona do Complexo Maria do Céu - que abriga o Club Metrópole, Pajubar e Bar do Céu, localizados na Rua das Ninfas, na Boa Vista - afirma que apesar dos contratempos, esses espaços promovidos com e para pessoas queers sempre possuem uma demanda grande e a tendência é aumentar.
'Eu acho bem efervescente, como todo mercado tem épocas que estão assim mais em evidência, com mais incentivos, mas recentemente tenho visto alguns editais públicos apoiando iniciativas de documentários e expressões de cultura LGBT. (...) Acho que até cinco ou seis anos atrás a gente teve um boom realmente, mas a cultura drag é muito forte e se fortalece a cada momento, a cada tempo, a cada corpo, a cada expressão', afirma a proprietária.
É por isso que pessoas como Vinicius Gouveia, diretor audiovisual, mestre em mídia e DJ, andam fazendo o possível para reverter esse quadro. Tendo tocado em inúmeras festas e shows da noite recifense, Vinicius conheceu e acumulou uma grande admiração por drag kings e queens de todos os tipos. Por isso, idealizou e criou o Drag Ataque, projeto de proposta documental e com exibição nacional que tem como objetivo trazer visibilidade a artistas drags do Norte e Nordeste do país. A série vai contar com 12 episódios que vão abordar todo o espectro criativo da arte drag e suas especificidades, mostrando a realidade dos processos de costura, canto, lip sync e maquiagem, por exemplo, sendo transmitida no canal Fashion Tv, em horário nobre.
As protagonistas foram escolhidas por meio de uma análise de formulário e serão apresentadas ao público para além da faceta artística, focando também em sua vida pessoal. Sendo uma produção local, o Drag Ataque possui apoio do Funcultura e do Fundo Setorial do Audiovisual de Pernambuco. O diretor conta que foram alguns anos esperando a aprovação do projeto, mas agora as gravações estão em sua fase final e pretendem chamar atenção da falta de valorização que o cenário drag recebe, desmistificando inúmeras questões que ainda permeiam a realidade do país.
Projetos assim são importantes para trazer destaque a essas artistas e pessoas que possuem um papel tão significativo na forma de desafiarmos as normas binárias de gênero e sexualidade tradicionalmente impostas, abrindo espaço para um amplo debate e formas de expressões de identidade. São responsáveis também por construírem ambientes seguros para a população LGBTQ+, onde todas as formas de existir são celebradas e reunidas. Esses espaços são cruciais para a formação de laços de solidariedade e apoio entre membros da comunidade.