“Eles têm medo de nós” chega à última semana de visitação no Museu da Abolição
Thays Medusa, idealizadora do projeto que levou a Comunidade do Bode ao equipamento cultural, fala sobre a produção da exposição e a ocupação de espaços por pessoas negras.
Letícia Barbosa
21 de novembro de 2023
Mirella, Sheyla, Edna e Bob ganharam um espaço especial no Museu da Abolição, no bairro da Madalena, no Recife. Moradores da Comunidade do Bode, localizada no Pina, na Zona Sul da cidade, elas e ele são algumas das pessoas retratadas na primeira exposição individual da fotógrafa Thays Medusa, intitulada “Eles têm medo de nós”.
Imagens: Maya Albuquerque @lagartadelfuego | @delfuego.ft
São 31 telas com registros que destacam o protagonismo de pessoas negras, periféricas e trabalhadoras que denotam o ecossistema do bairro do Pina, conhecido pela tradição de pesca de frutos do mar. “Através das minhas fotos quero colocar no centro as mulheres negras, seus filhos, jovens e crianças. Também ressaltar que dentro da comunidade existem várias potências, seja ela profissional, artística ou cultural. Esse projeto vem para mostrar que é possível, que existe uma energia de transformação que pulsa dentro das favelas”, destaca Medusa.
A exposição chega à última semana de visitação, disponível até a próxima quinta-feira, 25 de janeiro, das 9h às 17h. Dentro da programação, um documentário sobre o processo será exibido no equipamento cultural, na segunda-feira, dia 21. Em entrevista para a Manguetown Revista, Thays contou um pouco de suas vivências no Bode e sobre a concepção e realização do processo.
Thays Medusa
Medusa é uma mulher negra de 25 anos, cria da periferia de Paudalho, Zona da Mata norte de Pernambuco. Seu encontro com a fotografia veio do movimento HIP HOP, indo morar na favela do Bode, aos 20 anos, e passando a desenvolver neste espaço diversas atividades formativas e socioculturais com movimentos sociais locais como o Coletivo Pão e Tinta, Coletiva Cabras e Livroteca Brincante do Pina. Em seu trabalho, ela usa seu olhar através das lentes para retratar e contar suas próprias histórias e do território onde vive, estimulando conceitos de amor-próprio, autoestima e autoconhecimento da população preta.
Sobre as possibilidades que o trabalho fotográfico oferece, ela declara: “eu iniciei na fotografia de outra forma [que não a acadêmica], não tenho curso, fui aprendendo na tora, na vivência, no olhar. Para mim, ela [a fotografia] tem esse poder de guardar memória, de marcar momentos da vida.”
Eles têm medo de nós?
A reflexão sobre o título escolhido por Medusa para sua primeira exposição individual veio de uma das representadas. A fotógrafa conta que Mirella, ao se deparar com a frase, questionou: “E a gente é bicho?”. A conversa veio seguida de uma troca sobre trajetórias da empregada doméstica e da artista, como conta Thays.
“Eles têm medo de nós” nasceu de uma frase escrita na parede por uma amiga de Medusa durante uma ocupação no antigo CSU, um prédio abandonado na comunidade que foi ocupado por coletivos e artistas da região, em fevereiro de 2022. “ Minha amiga escreveu na parede e vi aquela frase e os pirraias brincando em torno, um deles com a coroa na cabeça. Fiz a foto com o celular mesmo. Nunca divulguei essas fotos da ocupação, porque eu queria desenvolver, refletir mais sobre o impacto daquela frase com as crianças ao redor. Quando eu e Jéssica [Jéssica Jansen, coordenadora de produção e responsável pela elaboração do projeto] nos sentamos para desenvolver o projeto, tudo fez sentido.”, explica a fotógrafa.
A exposição foi realizada com recursos do edital do Sistema de Incentivo à Cultura (SIC), da Prefeitura do Recife. A produção foi desenvolvida em etapas. A princípio, Medusa, sua equipe e as pessoas fotografadas passaram por um período de vivência, durante o qual o cotidiano das famílias foi acompanhado. “ A gente fez uma imersão na casa das pessoas, desde sair pra pescar, levar menino pra escola, sem precisar se arrumar, da forma mais natural possível”, explica a artista.
Imagens: Thays Medusa
A abertura da exposição foi marcada pela presença de cerca de 40 pessoas da comunidade para prestigiar suas representações aos olhos de Medusa no Museu da Abolição. Na ocasião, a rapper e articuladora social, Adelaide Santos, recitou um poema de sua autoria dedicado à mostra. Já a estilista e ilustradora, Yuriel Santos, movimentou a noite com seu trabalho que relaciona moda, territorialidade e sustentabilidade ambiental. A cineasta Yane Mendes também participou do momento.
Na segunda etapa, uma roda de diálogos realizada na Livroteca Brincante do Pina, permitiu que as pessoas representadas compartilhassem seus sentimentos a respeito de todo o processo. Todas as etapas anteriores foram registradas para a produção de um documentário, já exibido na Comunidade do Bode, e com sessão no Museu da Abolição na última semana de ocupação do espaço.
Por trás da Produção
“Eles têm medo de nós” é para Thays Medusa parte de um movimento que reúne a introdução de outras formas de fazer arte e ocupar espaços, o registro de memórias e o fincar o pé na resistência cotidiana de uma comunidade contra um sistema que quer destruí-la e de fato tem medo de sua potência.
Ela conta que sua proposta envolveu subverter a lógica branca de produção. “ELES chegam na favela, tiram foto das pessoas, levam para grandes exposições, comercializam o trabalho e as pessoas nem fazem ideia de que sua imagem está em algum lugar. E foi justamente para quebrar essa lógica, que eu queria que as pessoas soubessem do que se tratava, que as pessoas pudessem participar. A gente tinha momentos de troca, a gente conversava do que se tratava”, explica Medusa.
As famílias representadas foram consideradas em todo processo parte ativa do projeto, inclusive em relação aos recursos financeiros. Segundo a fotógrafa, parte da verba do edital, assim como do valor arrecadado com a venda das telas, foi utilizado como remuneração para as pessoas que toparam embarcar nessa imersão.
Imagens: Maya Albuquerque
As histórias foram tratadas com toda sensibilidade de quem faz parte do “nós”. Uma das moradoras, Sheyla, é catadora de sururu e aprendeu a ler por meio de um projeto promovido pela Coletiva Cabras. “Catar sururu” foi uma de suas primeiras palavras escritas. Da soma da lente de Medusa com a escrita de Sheyla nasceu aquela que é a obra favorita da fotógrafa.
No aspecto memória, Medusa se coloca no lugar dos adultos, mas, principalmente, das crianças daquele território. “As crianças vão saber como era aquele lugar. São infâncias que parecem muito com a minha. Eu me vejo nessas pessoas. Pensei em como tenho pouquíssimas fotos da minha infância, pensei em como é importante, como eu gostaria que alguém tivesse feito isso comigo”, relata.
Porém, a memória também é do lugar, ameaçado pela especulação imobiliária. Ela, por sua vez, usa sua exposição para alertar o que vem acontecendo com a comunidade. “O pina está sendo demolido e logo mais não vai ter nada”, desabafa a artista.
Ela se refere à desocupação das palafitas da área. O procedimento, promovido pela Prefeitura do Recife, levou algumas famílias ao novo habitacional, Encanto de Moça, ou ofereceu o valor de R$ 300,00 como auxílio aluguel. Entretanto, moradores e moradoras indicam como o recurso é muito inferior ao necessário para uma real ajuda. Além disso, a mudança, para os que vão para o habitacional, é realizada de forma questionável, isto é, os pertences são retirados da casa, que é logo demolida, e ficam aguardando o transporte embaixo de sol e chuva. Já o Rio Pina tem sofrido com acúmulo de entulhos.
Organizando para desorganizar
No mesmo período em que a Comunidade do Bode ocupa o Museu da Abolição, o Barro fez morada na Caixa Cultural Recife, pelas mãos de Jeff Alan. “Comigo ninguém pode” é o título da exposição em grafite que tem proposta semelhante a de Thays Medusa.
Os dois projetos dos dois artistas periféricos e amigos constituem um movimento de ocupação dos equipamentos culturais. Para Medusa, trata-se de um passo importante: “é um movimento que inspira outras pessoas para estarem neste espaço. Às vezes, é só o movimento de iniciar, meter as caras de trazer pessoas e incentivar que venham mais, que pensem como ocupar esses espaços”, defende.
Sobre o Museu da Abolição, ela conta que, em sua ideia inicial, a intenção era expor em uma galeria, porém, até a aprovação no edital, resolveu levar as fotografias para um espaço público. Ela já tinha exposto seu trabalho de forma coletiva no equipamento e apresentou sua proposta.
Medusa defende esses espaços acolhedores. “O museu está abrindo pra pautas novas, como pra mim, que sou fotógrafa que tô começando e eles abrem as portas pra isso. Houve lugar que dificultou a instalação, querendo colocar em espaço menor, por exemplo”, declara.
Em um projeto majoritariamente realizado por mulheres negras, Medusa conseguiu levar o Bode para o Museu, em representação e em materialidade. Para essa força-tarefa, uma equipe massa trabalhou bastante.
Maria Rocha Texto curatorial
Rebecca França Mediadora
Jessica Jansen Direção de produção
Mila Barros Produção e logística
Bárbara Vitória Audiovisual e roteiro
Ingrid Veloso Audiovisual e designer
Maya Santos Assessoria de Imprensa
Maya Albuquerque Fotografia Still Mauricio
Shell Osmo Curador
Mauricio Deliira DJ Sonoplasta