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‘Educar para o nunca mais’: o papel do Memorial da Democracia enquanto mecanismo de resgate da luta contra a Ditadura Militar

Espaço visa atuar como uma ferramenta educativa para toda a população e homenageia as vítimas pernambucanas do Golpe de 1964

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Genivaldo Henrique e Isabel Bahé

20 de setembro de 2023- 18:00

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      Uma bolsa de couro envolta por uma redoma de vidro. No canto, uma etiqueta: “Enforcamento de Anatália de Souza de Melo”, 22/01/73”. O atestado de óbito indicava suicídio. Na outra extremidade da sala, uma reprodução de depoimentos sobre a sua morte. As manchetes de jornais se deleitaram com a notícia. O Diário de Pernambuco estampou em sua capa: “Subversiva suicida-se com alça de bolsa no banheiro”, complementado pelo Jornal do Commercio: “Subversiva se enforca no banheiro”, junto a uma foto de Anatália coberta por um lençol. 

Sua história apenas consta em relatórios, sua memória resgatada pela Comissão da Memória e Verdade Dom Hélder Câmara. Anatália foi assassinada por agentes do Regime Militar, sepultada sem o consentimento da família e sem o atestado de óbito. Essa narrativa se destaca na sala principal que homenageia as 51 vítimas de Pernambuco, mortas e desaparecidas durante a Ditadura Militar.

É com essa visão que nos deparamos no final de nossa excursão ao Memorial da Democracia de Pernambuco Fernando Vasconcellos Coelho, localizado no Sítio da Trindade, Zona Norte do Recife. Junto a um compilado de quase duas horas de depoimentos, ouvimos um remanescente do Golpe relatar o processo de reconhecimento do corpo de Anatália, que naquela época foi acusada pelos policiais de tirar a própria vida após uma sessão de interrogatório. A verdade foi descoberta 44 anos após a sua morte, depois de meia década de pesquisas e investigações conduzidas pela Comissão Estadual da Memória e Verdade Dom Hélder Câmara.
 

“Ela era uma moça super jovem, assassinada com 28 anos de idade. Seu atestado de óbito foi um dos retificados pela Comissão. Foi acusada, assim como tantos outros, de ter sido a culpada pela própria morte. Este atestado foi retificado, e aqui foi colocado que ela morreu como vítima de asfixia devido às torturas que sofreu. O nosso objetivo é resgatar essa memória e não deixar que isso se perca, explica Amanda Barbosa, graduada em História pela Universidade Federal de Pernambuco e educadora do Memorial, relatando a importância do trabalho da Comissão Estadual da Memória e Verdade Dom Hélder Câmara.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

                                                                 (Imagens: Edson Holanda/PCR)



A memória em espaço físico

O Memorial da Democracia de Pernambuco Fernando Vasconcellos Coelho atua na manutenção de histórias, como a de Anatália, para que não se repitam. Inaugurado em 29 de dezembro de 2022, o espaço é fruto do Art.11 da lei 14.688 de 2012 que criou a Comissão Estadual da Memória e Verdade Dom Hélder Câmara, estabelecida pelo então governador do estado Eduardo Campos. O objetivo era que o Memorial atuasse como um órgão de continuidade, materializando, em um espaço físico, o trabalho da Comissão, com todo o acervo adquirido nas pesquisas sobre as vítimas pernambucanas da Ditadura.
 

Aberto para visitas de terça-feira a sábado, das 11h às 17h, o próprio local representa uma herança de luta e revolução. O casarão já foi sede do Movimento de Cultura Popular (MCP) no início do século passado, que aspirava uma formação de cidadãos de baixa renda alfabetizados, utilizando o método educativo de Paulo Freire, que integrava o movimento até sua dissolução em março de 1964, após tanques militares invadirem o local, expulsarem os militantes e proibirem a existência do MCP.

Assim, Amanda destacou que a organização do acervo do Memorial foi pensada para que a memória das vítimas perdure, evitando que crimes desse tipo se repitam: “Nos painéis vemos uma forma de relembrar essas vítimas de Pernambuco. Eles prestam uma homenagem para que essas pessoas não sejam esquecidas e para que essa história não se repita”, garantiu Amanda.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

                                                                 (Imagens: Folha de Pernambuco)


O Memorial pode ser descrito como um grande acervo do trabalho da Comissão Estadual da Memória e Verdade, que reuniu diversos sociólogos, historiadores e presos políticos durante o regime ditatorial no Brasil para recolher o máximo de informações possíveis sobre as vítimas no período. Ao fim do levantamento, foram documentados 51 mortos e desaparecidos em Pernambuco através de um contato direto com seus familiares, sendo estes devidamente indenizados pelo estado. Dito isso, o Memorial se consolida como um espaço de resgate da memória dessas pessoas, relembrando suas histórias e garantindo o reconhecimento dos que lutaram pela nossa democracia.

Entretanto, este número cobre apenas a documentação que a Comissão conseguiu alcançar através dos registros oficiais e depoimentos de tais  familiares até o encerramento das suas atividades, em 2017. Ainda assim, a expectativa interna do Memorial é de que, com o tempo, mais parentes de outras vítimas entrem em contato e também possam ser homenageadas e lembradas no espaço, conforme nos explicou Amanda Barbosa.

“Todos os nomes que estão no Memorial foram retirados de um documento que é posterior à Ditadura. No período da Comissão, foi feito um documento que tinha como objetivo indenizar esses ex-presos políticos e suas famílias, só que nem todas as pessoas vivas na época quiseram participar dessa indenização. Então só as pessoas que participaram e colocaram os seus nomes nesse documento foram identificados e hoje em dia fazem parte do acervo do Memorial. Por isso que algumas pessoas chegam aqui e perguntam o motivo para os parentes ou amigos deles não estarem aqui. É justamente por não terem participado desse processo da indenização”, revelou a guia do espaço.
 

Na mesma medida em que o trabalho realizado pela Comissão resultou no Memorial, o processo para organização e montagem das exposições também envolveu um longo processo de apuração. Tal processo foi realizado por sociólogos, historiadores, professores de universidades e ex-presos políticos, em sua maioria já envolvidos com a Comissão, conforme nos detalhou a guia histórica do Memorial.

“A curadoria foi feita por Isa Grinspum, que é uma socióloga pernambucana, mas que vive em São Paulo atualmente. Houve também um trabalho de consultoria histórica, do qual participou Socorro Ferraz, que foi professora na UFPE na graduação e na pós-graduação, se não me engano. Também teve a participação de Lilia Gondim, que é ex-presa política, inclusive foi torturada e depois fez parte da Comissão Estadual da Verdade Dom Hélder Câmara. Essas são as pessoas que produziram essa linha do tempo e pensaram em tudo que compõe esta sala”, disse Amanda Barbosa.


Abertura do espaço para o público e agendamentos escolares

 

Um dos objetivos do Memorial é servir como ambiente educativo, por isso ele está aberto para agendamentos escolares, possibilitando que professores levem seus alunos para conhecer o espaço. Ainda assim, por mais que estejam tentando atrair um público mais jovem, o Memorial é um espaço democrático e, conforme nos contou Amanda Barbosa, o espaço costumeiramente recebe visitas da “velha guarda” - pessoas que viveram o período da Ditadura - que, segundo a guia, se emocionam bastante com as homenagens presentes no local.

“A gente tem um público com muitos ex-presos políticos e familiares. [...] Então várias pessoas que passaram por esse momento vêm aqui prestar a sua homenagem a essas pessoas. E também tem pessoas que viveram memórias muito duras desse período e não conseguem entrar nessa sala. Eles visitam outras salas do Memorial, mas nessa aqui algumas pessoas choram, se emocionam bastante e não conseguem nem entrar”, relatou Amanda.
 

O Memorial conta com salas que perpassam diversos momentos históricos de Pernambuco. Na primeira exposição, já podem ser vistas peças que retratam  desde o período colonial do Brasil até as ações do MCP, contando com  painéis que exibem momentos marcantes da luta pernambucana pela democracia. Por fim, o espaço reserva seu maior palco para homenagear e contar, através de relatos adquiridos nos depoimentos dos familiares durante a Comissão da Memória e Verdade, as histórias das vítimas da Ditadura Militar brasileira em Pernambuco. 


“Educar para o nunca mais”

Por mais que a Comissão da Memória e Verdade tenha sido dissolvida em 2017, o trabalho persiste. Foi o que nos garantiu Manoel Moraes, ex-integrante da Comissão da Memória e Verdade, coordenador do Grupo de Trabalho do Memorial e membro atuante da Comissão da Anistia. Sobre seu envolvimento no levantamento da documentação das vítimas que viriam a ser homenageadas no Memorial da Democracia, o advogado e cientista político destacou ter encarado a missão como um grande desafio por conta de sua grande importância histórica.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

                                                     

                                               

 

 

  

                                                              (Imagens: Folha de Pernambuco)


“Foi um desafio incrível, mas evidentemente facilitado pelo fato de termos pessoas excepcionais fazendo parte do grupo de trabalho. Era uma grande responsabilidade estruturar a concepção e todo planejamento que envolvia dar seguimento ao decreto que instituía o Grupo de Trabalho”, revelou o ex-membro da Comissão da Memória e Verdade.

Por mais que o espaço funcione bem desde sua inauguração, o Memorial da Democracia ainda não possui uma equipe de gestão ou um Conselho Diretor, que já tem criação regulamentada por lei. Segundo Manoel, após a inauguração do Memorial, os antigos membros do Grupo de Trabalho encerraram suas atividades e entregaram à atual governadora de Pernambuco, Raquel Lyra, todos os documentos de recomendação para que sejam nomeados os gestores do Memorial. Até o momento, isso ainda não aconteceu e o grupo segue no aguardo.

“Hoje em dia o Memorial vive outra fase, a de gestão. Nós, que fomos membros do Grupo de Trabalho, deixamos para a governadora Raquel Lyra todos os elementos de recomendação para que seja dado seguimento ao próprio Memorial. Agora, estamos aguardando que seja nomeado o Conselho Diretor e uma equipe de gestão para que, então, sejam feitos esses convênios e parcerias com outros órgãos que são fundamentais para o fortalecimento e existência do Memorial da Democracia”, afirmou Manoel Moraes.

Após deixar a Comissão da Memória e Verdade, o coordenador passou a integrar a Comissão da Anistia, que é federal e constitucionalizada no Estado de Pernambuco a partir da Lei 10.559, conhecida como “Lei da Anistia”, de 2002. A manobra surgiu com o objetivo de conceder anistia política a qualquer brasileiro que tenha sido alcançado por atos de exceção por regimes governamentais. Pode ser considerada como um mecanismo de continuidade de todo o trabalho desenvolvido na Comissão da Memória e Verdade. Assim, de acordo com Manoel, hoje em dia há ainda uma possibilidade de requerimento coletivo da anistia, o que corrobora e garante mais direitos para o povo brasileiro.

Assim como a Lei da Anistia, o Memorial da Democracia de Pernambuco atua como um órgão de continuidade da Comissão da Memória e Verdade e, dessa maneira, tem o intuito de promover educação sem distinções para toda a população. Para Manoel Moraes, o intuito do trabalho dos membros da Comissão da Verdade era manter as memórias daqueles que combateram a Ditadura Militar para que, dessa forma, o povo brasileiro não precise passar por isso mais uma vez: “O Memorial da Democracia está ligado à ideia de ‘educar para o nunca mais’. Educar para que a sociedade reivindique a democracia, e não a ditadura”, garantiu Moraes.
 

Dessa maneira, o Memorial não tem lados ou partidos. Não há como questionar o posicionamento político de um espaço que visa defender um sistema constantemente questionado e atacado, em especial durante o mandato do ex-presidente Jair Bolsonaro. Dessa maneira, apesar de contrariar o extremismo, o Memorial repudia qualquer posicionamento que se configure como ataque de ódio à democracia e se apresenta, como detalhou Manoel Moraes, como um mecanismo educativo para toda a população.


“Nossa ideia não era fazer um Memorial do Antagonismo e sim da Democracia. E essa escolha foi muito acertada. Nunca fizemos um discurso em contraponto ao discurso de Bolsonaro, mas um discurso contra o senso comum. É uma luta de consciências e ideias, e o que a gente quer defender é que o Estado Democrático de Direito garante a ampla defesa, o contraditório, a separação dos poderes e a possibilidade de um Tribunal Constitucional que seja livre, capaz e autônomo de interpretar a Constituição, que é a lei maior. A partir desses pilares, nós temos uma democracia”, ressaltou o coordenador.

Memorial da Democracia como resgate da História

Após conversarmos com membros internos do Memorial e da Comissão, a nossa reportagem nos levou a mais uma personagem importante da luta pernambucana contra a Ditadura. Se trata de Lilia Gondim, ex-assessora da Comissão da Memória e Verdade Dom Hélder Câmara e ex-presa política durante o regime militar. Como já mencionado, também foi uma das pessoas responsáveis pela curadoria do Memorial da Democracia, sendo um patrimônio vivo de tudo que o espaço representa enquanto acervo histórico e espaço de resgate.

 

 

 

 

                                                              (Imagens: Folha de Pernambuco)


“A Comissão da Verdade teve um trabalho de elucidar os fatos. Por exemplo, a gente tem a lista de 51 desaparecidos em Pernambuco, isso sem constar o pessoal do campo. Porque ninguém tem noção, ninguém tem ideia até hoje. Ninguém sabe quantos foram [mortos] porque não tem registro. Então a Comissão da Verdade teve o trabalho de procurar documentos que comprovassem que fulano de tal foi torturado dessa forma, que fulano de tal foi na cadeia”, iniciou a ex-membra da Comissão da Memória e Verdade”, iniciou.


“[A ditadura] não perde em canto nenhum para o Nazismo e para os campos de concentração… Não perde em nada. Só sabe como era quem viveu nessa época.”, completou Lília Gondim.

O Memorial atua no resgate da memória das vítimas dos militares em Pernambuco e se apresenta como ferramenta educativa e conscientizadora, uma vez que um espaço de memória só funciona se for configurado para ser dinâmico. Deve haver, então, além da curadoria das peças que compõem a exposição, a conscientização de que aquele local existe por um motivo, e está ali para ser ocupado por toda a população, que precisa ser relembrada constantemente o que é um estado sem democracia e os perigos que nos rondam. 

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