Mulheres reivindicam maior espaço na cantoria de viola
Presentes como tema desde os primeiros registros da manifestação cultural, as cantadoras vêm conquistando seu lugar no segmento
Izabela Cavalcanti
26 de junho de 2024
A cantoria de viola (cantoria de repente ou, simplesmente, cantoria) é um gênero poético oral referência da cultura nordestina. Marcadamente representada por homens, vem, contudo, há alguns anos, sendo ocupado pela presença e talento femininos. Entretanto, os convites, em sua maioria, são para eventos cuja temática é a mulher, restringindo esse grupo.
Nos últimos 20 anos, foram poucas as repentistas mulheres que obtiveram reconhecimento. O que pode ser comparado com a aparição de uma média de 50 homens, no mesmo período. O cenário atual revela que a estrada da igualdade ainda está muito longe de ser totalmente percorrida, mas os primeiros passos vêm sendo trilhados com firmeza.
O Gênero
A cantoria é uma forma poético-musical construída, mais comumente, por duas pessoas que cantam em um desafio de versos improvisados acompanhados, geralmente, da viola, mas também podem ser utilizados o violão ou a rabeca.
Seus primeiros registros estão entre o final do século XVIII e início do século XIX, na Serra do Teixeira, na Paraíba, e é um gênero autenticamente nordestino. Sua manifestação se dá, principalmente, nos municípios interioranos do nordeste, mas também aparece com bastante frequência em São Paulo, um dos principais destinos do êxodo dessa região no século passado.
Quanto à construção dos versos, há várias modalidades de cantoria. Dentre elas, as mais usadas são sextilha, sete linhas ou sete pés, décima, mourão que você cai, meia quadra, quadrão, gabinete, toada alagoana, dez pés de queixo caído e gemedeira. Os modelos variam em comprimento, quantidade silábica e tipos de rimas. Vale atentar que o improviso é sempre realizado respeitando as regras de cada gênero, e a escolha do tipo de poema é feita pelo público ou pelo próprio organizador do evento, como é mais comum.
As mulheres nos repentes e as mulheres dos repentes
Cantadoras Mocinha Maurício e Santinha Maurício. Foto: Laércio Queiroz
As mulheres sempre estiveram presentes nos encontros de repente. Porém, não atrás dos instrumentos de corda, infelizmente, mas nos discursos dos poetas. Elas, frequentemente, encontravam-se na mira de versos que estereotipavam a condição feminina. Por um lado, eram referenciadas como únicas pessoas responsáveis pelas tarefas domésticas, e por outro, como verdadeira representação da beleza, honestidade e virtude.
O professor Laércio Queiroz, pioneiro na pesquisa sobre mulheres repentistas no Brasil, enxerga na prática uma forma de alinhar condutas. “Esses estereótipos femininos são descritos na literatura com um caráter pedagógico, ditando normas de conduta que devem ser adotadas por elas”, explica.
Apesar do interior dos estados nordestinos ser frutífero na tradição da poesia oral, poucas são as mulheres vistas até hoje nesses ambientes. De acordo com Queiroz, as mulheres são figuras quase inexistentes nas antologias dos poetas, apesar de alguns raros registros já apontarem a presença feminina, desde os primeiros momentos da cantoria. Ele aponta também que a falta de registro não cabe a verdadeira ausência de cantadoras, mas, provavelmente, ao desejo de apagamento da presença de mulheres, assim como existia, ainda, em fins do século XX.
Tal universo de discriminação fez com que as mulheres enfrentassem dificuldades para se inserirem no meio da cantoria. Tanto por parte dos cantadores, que projetavam vários tipos de dificuldades para a presença feminina, como pelas famílias. Pais e maridos não as deixavam sair para cantarem, uma vez que a cantoria é uma atividade externa à casa ou por estarem na presença de outros homens.
“O próprio espaço da cantoria é um espaço [predominantemente] masculino, porque a mulher não tinha a possibilidade de estar no espaço público antigamente. Posteriormente, ela vai ter grandes impedimentos pela mesma razão. Os pais até permitem que os filhos sejam cantadores, mas as mulheres, não podem ser”, afirma Laércio. O pesquisador destaca ainda que algumas vezes, elas desfaziam seus casamentos ou só cantavam quando ficavam viúvas.
Além disso, os cantadores praticavam boicotes às mulheres, como explica Laércio. “O cantador boicotava, dizia que não existia mulher na cantoria. Ou quando admitia haver, dizia que ela não cantava bem. Ele também a orientava a afinar a viola de acordo com a voz dele, só que a voz dele, na imensa maioria das vezes, era mais grave do que a das mulheres, daí elas precisavam de gritar muito, para poder atingir as vozes masculinas”.
O problema persiste até os dias de hoje. “Isso ainda existe. Há cinco anos fui a uma cantoria em Buenos Aires, em Pernambuco, e os homens não quiseram emprestar a viola para as mulheres que não tinham, porque diziam que elas iam desafinar”, completa o pesquisador.
Cantadoras o ano inteiro
Rafaela Dantas e Fabiane Ribeiro se apresentam em dupla
Diante de tanta discriminação, as mulheres cantadoras têm consciência de que muitas das suas dificuldades são advindas do machismo estrutural. De acordo com a poeta Santinha Maurício, de Abreu e Lima, na Região Metropolitana do Recife, “a dificuldade era só ter espaço. Os cantadores tinham que convidar a gente, mas os cantadores tinham medo das mulheres tomarem o espaço deles”.
Ainda assim, ela declara que, hoje, os cantadores dão mais espaços às cantadoras porque “a cultura exige”. Ou seja, não foi uma mudança que surgiu dos próprios repentistas, porém das estruturas políticas. “Tem um polo em Caruaru, o polo do repente, no São João, que tem uma professora que tá lutando pra botar uma dupla de violeiro e uma de violeira, porque ela disse que as mulheres também têm que ter direito”, afirma. Ela também conta que já participa de eventos estaduais que exigem a presença feminina.
Ainda de acordo com as dificuldades, ela expõe: “teve várias [mulheres] que deixaram o marido para não deixar a profissão. Teve uma mesma que passou dez anos sem cantar porque o marido não deixava, daí agora que ele abriu mão . Teve muitas que o marido disse: ‘ou casa ou deixa a viola’”, completa.
Para Santinha, o cenário atual está bastante profícuo para a cantoria, com oportunidades de viagem por diferentes estados para cantar e viver apenas da carreira artística neste segmento. Entretanto, infelizmente, tais oportunidades ainda são, predominantemente, para os cantadores, não para a maioria das cantadoras.
Outra dificuldade que impede a maior circulação de mulheres cantadoras, apontada pela poeta, é a falta de espaço que acolha apenas mulheres nas cidades que recebem as cantorias. O espaço íntimo dividido com homens é visto com desconfiança pela família, marido, namorados e, por fim, pela sociedade. No entanto, tal partilha de ambiente nunca impediu os cantadores de viajarem.
2ª Festival de Repentistas na Casa dos Pobres, em 2020— Foto: Divulgação
Rafaela Dantas, de 27 anos, do Rio Grande do Norte, é uma das cinco cantadoras que emergiram no meio nos últimos 20 anos. Ela começou com a poesia escrevendo ainda nos cadernos da escola, mas sempre foi apaixonada pela cantoria de viola. “Eu gosto demais, tenho um amor muito grande pela cantoria. Eu vou pra cantoria, eu canto, mas quando eu assisto uma dupla de cantadores, fico sem acreditar no que estou vendo. Eu sei que sei fazer também, mas é inacreditável ver uma dupla”, afirma.
Assim como Santinha, Rafaela avalia que a presença de mulheres vem aumentando nos eventos dedicados ao gênero. “As mulheres são poucas ainda, mas aos poucos estão se abrindo as portas para gente”. Porém, os convites costumam ser restritos. “Eu canto tanto com homem quanto com mulher, mas os convites são mais para festivais de mulheres”, completa.
Ela começou a cantar com a viola do pai, que também é cantador, mas que não faz da viola sua profissão. Assim como todas as outras cantadoras, começou a cantar incentivada pela família ou pelas mídias: o rádio, em décadas anteriores, ou os vídeos das redes sociais, mais recentemente.
Além de seus pares, a artista destaca o incentivo de uma cantadora que, apesar da mesma faixa etária, veio antes dela. “Fabiane Ribeiro foi quem me incentivou. Eu já cantava viola e ela sabia disso, só que eu não tinha coragem de cantar para o público, aí foi ela que me deu esse incentivo. Eu perdi a timidez e estou hoje na profissão por causa do incentivo dela.” Um sucesso, tendo em vista o número de cantadoras que tem como exemplo, apenas, outros homens.
Das novas às antigas gerações, Rafaela aposta que “as mulheres se unam, que as mulheres se dêem as mãos”. E enfatiza: “toda mulher na cantoria sonha com isso: igualdade”.