Nalva Silva e uma jornada de encontros com a cultura, a ancestralidade e educação
A cantora celebra um novo ano como a voz de agremiações que integram os cortejos Ubuntu e Tumaraca, tradicionais no carnaval recifense.
Letícia Barbosa
06 de janeiro de 2024
Reconhecida pela voz que ressoa pelos quatro cantos, Nalva Silva encontrou na música e também na pedagogia o caminho para fortalecer a cultura popular e honrar a ancestralidade. A cantora empresta seu talento a duas celebrações que antecedem o início oficial do Carnaval de Recife: O Ubuntu e o Tumaraca.
Em sua quinta edição, o Ubuntu consiste na reunião de 29 afoxés que se reúnem para pedir a benção dos orixás para a festividade que se sucede. A cerimônia tem início às 6 horas da manhã, no Núcleo Afro, localizado no Pátio de São Pedro, na região central do Recife, onde ocorre o preparo do banho de ervas que será utilizado para banhar as ruas durante o cortejo. A partir das 15h30, os grupos seguem em caminhada entre a Avenida Rio Branco até o Marco Zero. No palco principal dos festejos carnavalescos, cada afoxé entoa uma música reverenciando um orixá. O momento acontece sempre às quintas-feiras que precede a abertura do Carnaval, desta vez, 8 de fevereiro.
Já o Tumaraca, por sua vez, é constituído por 13 nações de maracatu que fazem parte do grupo especial do Concurso de Agremiações. Cerca de 700 batuqueiros e batuqueiras tomam as ruas do Bairro do Recife. Este ano, em sua 21ª edição, o evento homenageia seu precursor, Naná Vasconcelos, que faria 80 anos de idade se estivesse vivo. Para 2024, os grupos terão ainda o acompanhamento do pianista Amaro Freitas, do Balé Bacnaré, do cantor Lucas dos Prazeres e da poeta Luna Vitrolira. Além disso, uma vez chegando ao Marco Zero, onde acontece o encontro dos maracatus, uma parceria inédita será feita com o Olodum, referência de percussão de origem baiana. O evento acontece a partir das 17 horas, também no dia 8 de fevereiro.
No Ubuntu, Nalva é Afoxé Omô Nilê Ogunjá. No Tumaraca, ela é uma das integrantes do Grupo Voz Nagô que acompanha o grande encontro. Em clima carnavalesco, a Manguetown Revista apresenta a trajetória da dona de uma voz tão importante da cultura popular recifense.
Entre Rizete e Jade, há Nalva
Filha de Rizete, ou melhor Naninha, terceira na ordem de 4 irmãos, mãe da pequena Jade, professora e a voz que anuncia a ancestralidade e a resistência cultural de diferentes grupos de cultura popular de Pernambuco, esta é Marinalva Silva. Na verdade, Nalva Silva, como reivindica ser chamada, hábito herdadoda mãe.
(Imagens: Reprodução/ Débora Santos)
Mulher preta, autodeclarada, bem como Alterdeclarada pelos lábios grossos, nariz negróide e pele retinta, Nalva soma ciclos em um mês muito especial para o Movimento Negro, Julho. Período do ano de datas como o aniversário de fundação do Movimento Negro Unificado contra a discriminação (MNU), Dia da Mulher Negra Latino-americana e Caribenha, Dia da Mulher Africana, além do aniversário da ex-vereadora vítima de assassinato político, Marielle Franco. No último dia do mês, encerrando as homenagens, no dia 31 de julho , é a vez de celebrar Nalva, que este ano (2024) chegará ao seu 50º aniversário.
Herança da Família
Com a vida totalmente permeada pela música, a cantora conta que essa arte, junto com as manifestações de cultura popular entraram na sua vida sem pedir licença. Quando criança, seu pai e tio costumavam tocar percussão informalmente enquanto se divertiam. O tio, inclusive, mantinha um grupo de Maracatu, o qual não se recorda o nome.
Ela conta que, apesar de não entender muito bem, sentia-se atraída por aquela movimentação, seja nas festas de ruas, seja nos toques em terreiros que ia com seus familiares.
“Eu era muito pequena e não tinha tanta proximidade com as práticas do meu tio, mas lembro de admirar, achar bonito, principalmente, o canto. Tanto meu tio, quanto minha mãe cantavam. Minha mãe tinha uma voz potente”, conta Nalva.
Dona Naninha, sua mãe, cantava, informalmente, durante os afazeres domésticos, e o fazia muito bem, como enfatiza a vocalista do Omô Nilê. Entretanto, sem técnicas e preparo adequado para a frequência das audições caseiras, Naninha chegou a ter problemas em suas cordas vocais.
As pontes para acessar, os muros para permanecer
É aos 12 anos que Nalva inicia seu caminho na música. Na Igreja Católica, formou uma banda junto aos irmãos para acompanhar as missas e animar os encontros da instituição. Sua primeira apresentação foi em
uma colônia de férias, na qual participou da oficina de canto. Segundo ela, a escolha pela formação foi ao acaso, pois era a única que ainda tinha vaga.
(Imagens: Reprodução/ Débora Santos)
Daí para frente, Nalva integrou a banda de forró Doce Mel e a banda de axé Pinguins. Nesse percurso, teve a oportunidade de trabalhar com nomes como Nádia Maia e Almir Rouche, referências no meio musical pernambucano. Durante cerca de sete anos, sua rotina envolvia conciliar estudos, trabalho formal remunerado e as apresentações, principalmente, nos ciclos juninos e carnavalescos. Sobre isso, a artista desabafa acerca das dificuldades de viver da arte. “Nunca dá para ser só a música. Era hobby. Eu trabalhava e estudava”, declara a artista.
A negligência com que se trata a classe artística fez a cantora repensar seus passos. “Passei de um a dois anos sem tocar. Estava cansada de viajar, correr tanto e não receber adequadamente. Os empresários ficavam com o dinheiro”, declara.
Depois de um tempo afastada do meio artístico, Nalva ingressou no Afoxé Oyá Alaxé, tocando abê no Carnaval de Recife, por influência de suas irmãs. No grupo, também estava Dário Júnior, atual presidente do Afoxé Omô Nilê Ogunjá.
O caminho de Dario e de Nalva se cruzam, antes de se conhecerem, por meio de uma terceira integrante do afoxé, mãe Ana, esposa daquele que seria o líder Omô Nilê. “Ana Carla frequentava a mesma igreja que eu. Ela conhecia minha história na música”, Nalva explica.
Por incentivo da esposa, Ana Carla, Dario lançou o convite para um novo afoxé, no qual Nalva dominaria os microfones.
“Eu sabia muito pouco de afoxé, da língua, de técnica”, ela conta. Dário lhe deu um acervo de registros de músicas de afoxé, mãe Andréia, também componente da diretoria atual do Afoxé Omô Nilê Ogunjá lhe presenteou com uma apostila da língua Iorubá e, em 2006, lá estava Nalva como vocalista, desta vez, em um nascente afoxé.
“Na época, acabávamos de nascer e ainda não tínhamos figurino”, relembra Nalva. Ela conta que seu primeiro dorso foi confeccionado pela mãe Andréia e sua saia foi improvisada de um figurino de quadrilha, com barra branca e forro azul. Muito pano foi tecido desde lá até os mantos gloriosos que vestem e compõem a performance do Afoxé Omô Nilê Ogunjá que se conhece hoje.
Novos Caminhos
É também nesse período em que Nalva encontra seu primeiro emprego em uma loja no centro do Recife. Inicialmente, entra para cobrir uma licença maternidade e é efetivada como vendedora. Para ela, a nova ocupação trouxe a possibilidade de trilhar novos caminhos: a universidade.
“Nesse momento, eu vi a oportunidade de entrar em uma universidade privada, por eu ter condições de pagar e aproveitar aquele momento, que eu não sabia até quando eu iria estar ali”, explica ela.
Fora da música, foi na Pedagogia que Nalva se encontrou. Esta também bateu na porta dela ao acaso. Depois de muito esforço para entrar em uma universidade pública, optou por ingressar no ensino superior privado. Com a nota que obteve, era possível escolher qualquer curso de licenciatura.
Uma vez pedagoga, em 2009 Nalva decidiu continuar os estudos e se especializar. Entre Gestão Escolar e História e Cultura Afrobrasileira, foi com a segunda que ela se identificou. Segundo ela, a imersão que estava vivendo dentro de um afoxé a fez se autoquestionar alguns elementos que permeiam a questão racial. Movimento semelhante aconteceu com Jade, de 7 anos.
Nalva conta como a filha reage diante de falas ofensivas. Certo dia um colega, disse à pequena que seu cabelo era “buxa” e ela, prontamente retrucou: “meu cabelo é black”, comenta a mãe orgulhosa sobre a reação da filha.
(Imagens: Reprodução/ Rec-Beat Recife)
Para Nalva, a vivência no afoxé foi importante para si e, agora, para Jade no que diz respeitoao reconhecimento da negritude e, mais que isso, o orgulho em relação à identidade negra. Quando criança, Nalva e as irmãs acumulavam feridas no couro cabeludo de queimaduras de alisamento. Atualmente, os domingos são para trançar os cabelos de Jade. A pequena, mesmo com tonalidade de pele mais clara que a cantora, gosta de dizer: “Sou negra, pareço com minha mãe”.
Hoje, pelas lentes de pedagoga, de cantora e de mãe, Nalva enfatiza como enxerga o que mudou de lá pra cá, bem como o que ainda insiste em permanecer. “Entendo que o processo é lento, porque são 300 anos de escravidão, [o racismo] não vai embora em uma geração”, desabafa.
Educação formal e popular de mãos dadas
Além da educação de Jade, a professora é responsável pela educação de várias crianças. Para ela, o trabalho de combater o preconceito é árduo e, por vezes, solitário. Ela lembra casos como o em que uma garota ficou de fora das aulas de música porque os pais afirmaram que a filha não aprenderia “macumba”. Nalva relata ainda como alguns professores se recusam a se aprofundar no ensino de história e cultura africana, afirmando se sentirem incapazes ou ainda com receio de ter que discutir a religiosidade.
Ela, porém, não perde uma oportunidade. A cantora-pedagoga faz questão de contar o caso de um único garoto negro em uma sala com em torno de 35 alunos que não sabia ler, mesmo estando no 5º ano do Ensino Fundamental I. Sua experiência como brincante de cultura popular e sua formação acadêmica a ajudaram a lidar com a situação. O garoto fazia parte de um grupo de maracatu e foi dali que Nalva encontrou o norte para promover a alfabetização da criança.
No âmbito da música, mais um passo foi trilhado por Nalva. Em 2009, ela passou a integrar também o grupo de sete mulheres negras que introduzem a abertura do Carnaval de Recife, com o grande cortejo de Maracatu. Desde 2017, com a morte de Naná Vasconcelos, a iniciativa tornou-se o Tumaraca, que toma as ruas do Bairro do Recife na quinta-feira que antecede a abertura oficial da festividade na capital pernambucana.
(Imagens: Débora Santos)
Mais recentemente, as duas linhas de atuação de Nalva se cruzaram de forma direta. Junto com o Afoxé Omô Nilê Ogunjá, ela vem construindo o “Projeto Agogô, o enunciado que faz acontecer”, iniciativa que visa pensar formatos de concretizar o que prevê a Lei 10.639, que determina a inclusão obrigatória do ensino de História e Cultura Afrobrasileira no currículo escolar. A proposta se pretende uma rede de vivências composta por coletivos e grupos de cultura popular que se unem para levar vivências às escolas.
Nalva segue deixando a vida lhe levar e alia com poder duas de suas faces em sua atuação antirracista como professora no ensino formal e integrando tanto o fortalecimento cultural nas ruas com o Afoxé Omô Nilê Ogunjá quanto o pedagógico com o Projeto Agogô. “No afoxé, eu sou vocalista, mas também sou pedagoga. Na escola, sou pedagoga, mas também sou do afoxé”, reflete.