A bolha furada: o que "Sotaque de Novela" revela sobre a realidade brasileira?
Críticas sobre estereótipos do Nordeste presentes na televisão evidencia a diversidade cultural da região
Guilherme dos Santos
27 de Junho de 2024
“De onde eu venho a gente diz
Oxe, eita carai, misericórdia, minha fia.
É pra ter um ataque, ator de novela
Quando imita nosso sotaque”
-Bell Puã
O trapper pernambucano Mago de Tarso, que em seus trabalhos tem colocado a cultura e tradição de Pernambuco e do Nordeste em evidência, lançou, no último dia 24 de maio, o videoclipe da música “Sotaque de Novela”.
O lançamento é uma parceria com Cyclope e Wr no Beat, sob o sample da música “Fingindo Que Não Tá”, do cantor e compositor Targino Gondim, famoso por canções juninas. Na obra, o trapper traz uma sonoridade animada e divertida, além de diversas referências sobre o Estado, marca já registrada em outras músicas do cantor.
Através da mistura do forró com o piseiro e o trap, Mago faz uma crítica ao estereótipo do nordestino na mídia tradicional, já que esta, habitualmente, associa a região à pobreza, ao déficit intelectual e ao atraso tecnológico e social. Mais do que uma crítica pontual, a nova música do trapper reflete a insistência de produções hegemônicas do sul e sudeste de reproduzir preconceitos, seja em novelas que retratam um Nordeste que parou no tempo ou em filmes que representam as pessoas da região de forma caricata – e falando com um sotaque que evidentemente só existe dentro dos estúdios.
Gravado no município de Petrolina, no Sertão pernambucano, o clipe gira em torno de uma sudestina que está conhecendo a cidade sertaneja e do seu par romântico, um rapaz determinado a desmistificar os preconceitos e a visão equivocada da moça. É por meio desse choque de cultura que Mago aproveita para mostrar as verdadeiras manifestações culturais e sociais do Estado. Ao abordar a diversidade, o orgulho da terra e até certas curiosidades, o artista também mostra inspirações diversas, que vão desde o manguebeat da banda Nação Zumbi & Chico Science, até o rock estadunidense do grupo Slipknot.
Imagem: Reprodução do clipe “Sotaque de Novela”
No passeio pela cidade, outras referências presentes são a música “Tareco e Mariola”, de Flávio José, “Mariô”, de Criolo, e o filme “Era Uma Vez”, do diretor Breno Silveira. A menção ao longa-metragem é uma homenagem à cena em que o protagonista apresenta a realidade da favela em que mora no Rio de Janeiro a uma garota rica, o que promove a quebra de preconceitos sobre seu lugar de origem, assim como faz o Mago.
Acima, cena do clipe da música “Sotaque de Novela”, abaixo, do filme “Era Uma Vez”
Contrária às produções televisivas que usam e abusam de um padrão nocivo para representação do Nordeste, “Sotaque de Novela”, assim como outras produções nordestinas, utiliza o resgate de diversos aspectos regionais para demonstrar a reprovação ao constante reducionismo presente na teledramaturgia. Nos últimos meses, um caso que gerou uma movimentação por parte do público foi o da novela “No Rancho Fundo”, quando foi divulgada a imagem promocional da nova atração do horário das 18h da Rede Globo. Nela, a família que protagoniza a trama está reunida, todos com cabelos bagunçados, suor no rosto, vestindo roupas surradas e aparentemente sujas e enquadrados no velho filtro amarelo.
Imagem: Divulgação
Para além da fotografia, os chavões continuam. Mesmo ambientada nos dias atuais, e contando com a presença de smartphones e carros na cidade fictícia onde se passa o folhetim, a novela insiste em colocar personagens em situações que demonstram má educação, ignorância e descontrole. Ser nordestino e pobre, aqui, é praticamente sinônimo de poucos modos.
(Meu) lugar
Assim como Mago de Tarso, muitos outros artistas já trouxeram críticas às formas pejorativas de representação do Nordeste e à xenofobia enfrentada fora da região.
Nos versos da música “Conheço o Meu Lugar”, de 1978, o cantor e compositor cearense Belchior já expressava a repreensão à ficção de um Nordeste presente no imaginário de quem é de fora.
"Não eu não sou do lugar
Dos esquecidos
Não sou da nação
Dos condenados
Não sou do sertão
Dos ofendidos
Você sabe bem:
Conheço o meu lugar"
Na canção, o poeta nega o nordeste estereotipado, homogêneo, miserável e castigado pela seca que o eixo Rio-São Paulo sempre propagou. Ao afirmar que não pertence a essa “nação dos condenados”, o cearense também demonstra sua consciência de classe, já que pertence à classe média, e contraria a “ficção” de um nordeste que é pobre e escasso.
Em 2017, nos versos do texto que abre esta matéria, recitado no Slam BR daquele ano, era a cantora, compositora, escritora e historiadora, Bell Puã, que destacava inquietação diante da visão midiática do que é o nordeste.
“[A mídia representa] de forma distante de como, de fato, nós somos, que é muito além da seca, do barro e das dificuldades. Há tantas representações culturais que temos e que a gente ainda não vê com tanta grandeza nesses espaços”, afirma a cantora.
Imagem: Reprodução/ UHGO
Obras como a de Mago e Bell são espelhos da inconformidade dos artistas diante do reducionismo do nordestino nos espaços. Nos seus trabalhos, assim como o trapper, ela faz questão de demonstrar o orgulho que sente das origens. “Sempre fui de fazer declarações a Pernambuco. Meu pai me ensinou a ter esse orgulho”, diz. “No meu novo álbum, Jogo de Cintura, tem uma música bem específica, chamada Estado das Maravilhas, com parceria de Jéssica Caitano, essa artista gigante lá de Triunfo (PE). Nela a gente fala sobre o orgulho de ser pernambucana, o chamando de estado das maravilhas, porque é, né? Há muitas maravilhosidades nesse lugar!”.
Em seu texto recitado no Slam BR de 2017, da qual foi campeã, Bell alerta aqueles que ousam inventar um nordeste na TV:
“Quando for imitar o sotaque de Pernambuco não se esqueça:
Esse é o povo mais guerreiro e vaidoso…
Em linha reta!”