O Teatro Valdemar de Oliveira perdeu-se no Tempo
Em meio aos lamentos da tragédia sofrida pelo patrimônio, pergunto-me se não presenciamos naquela quarta-feira a partida definitiva de uma parte de nossa história.
Isabel Bahé
19 de fevereiro de 2024
Artigo de Opinião
“A crônica de uma morte anunciada”. Definiu assim uma internauta a tragédia que aconteceu no Teatro Valdemar de Oliveira na manhã da última quarta, 7 de fevereiro. A sentença me remeteu ao título de um livro de Gabriel García Márquez, cujo narrador tenta juntar as peças de um assassinato por meio daqueles que o assistiram. Se foi essa a intenção da autora, eu não sei, mas seu comentário me fez indagar se, da mesma forma que o contador da história de Gabo, não presenciamos naquela quarta-feira a partida definitiva de uma parte de nossa história.
Poucas horas após compartilhar nas minhas redes as notícias do incêndio do teatro, recebi a mensagem de um amigo de infância, me contando de sua tristeza com o ocorrido. Então ele me lembrou das viagens que fazíamos na época da escola, no infantil, para assistir as peças que aconteciam no teatro. Eram de longe os pontos altos daqueles anos de criança. Aquela antecipação pueril pelo novo, que ia do momento que entrávamos no ônibus, sentávamos naquelas mesmas cadeiras que hoje são cinzas, até as cortinas finalmente se abrirem. Ah, como o tempo parava quando a peça começava! Até hoje não sei quantificar o tempo que passava naquele lugar, obcecada por cada detalhe do palco.
“Foi no Valdemar de Oliveira que descobri a arte do teatro.”
Poucos anos, já uma jovem adulta que traçava sua profissão, retornei àquele meu espaço de infância, cujo Tempo empurrou para trás. Fui pesquisar a adaptação de 1964 da tragédia de “Macbeth” (William Shakespeare). A fachada, que mal reconheci quando cheguei não fosse pela coluna cilíndrica, resistia com afinco ao abandono a que lhe foi submetido. As mesmas cadeiras nas quais havia sentado estavam - quando não destruídas - ocupadas pela poeira. Toda a estrutura do palco estava comprometida. À época, pelo menos, ainda havia o teto.
Logo acima do teatro estava, porém, uma ilha do tesouro. A Biblioteca Samuel Campelo, no segundo andar do edifício, guardava documentos, boletins, livros - inclusive pessoais de Valdemar -, e me lembro bem de ter visto alguns figurinos antigos do TAP (Teatro de Amadores de Pernambuco), remanescente da década de 1940 nos dias de hoje. Tal biblioteca, já desgastada e sem parte do arquivo, também se foi naquela quarta junto com o teatro.
De fato, uma morte anunciada. O Teatro definhou gradativamente aos olhos do seu público, com responsáveis muito claros com sua culpa no cartório. Não podemos dizer, porém, que não houve tentativas de salvá-lo: a classe artística, representada pelo grupo cultural João Teimoso e Movimento Guerrilha Cultural, defendeu o tombamento do espaço, que chegou a ser protocolado um projeto em 2022 e aberto enfim em setembro de 2023. Os medos da classe eram a degradação completa do espaço frente ao abandono, alvo em cheio da cupidez dos “urbanistas” da cidade. O TAP alegou que o tombamento do Teatro retardaria sua reabertura, mantendo o edifício em posse privada e assinando sua sentença.
Quantas perdas a cultura pernambucana deve sofrer para que atos reais sejam tomados para preservá-la? O Cinema São Luiz parece andar pelo mesmo caminho - apesar de esperarmos que as autoridades cumpram com suas palavras e 2024 ainda veja suas portas abertas -, sem falar nos outros lugares substituídos por sucatas altas que nos roubam até o ar. A cada espaço físico do Tempo Pernambucano que se perde, morre a nossa memória.
Nesses momentos, me ecoa a fala de Kleber Mendonça Filho em Retratos Fantasmas (2023): “[O Centro do Recife] Tem um clima de quem foi abandonado sem grandes explicações”. O Teatro também foi abandonado sem grandes explicações. Ou, no mínimo, sem uma luta justa. Do mesmo lado dos responsáveis legais pelo Teatro, está também o Governo Estadual com seu - veja só - descaso com nossos espaços de cultura e memória. Não há outra palavra para descrever o intervalo de quase um ano entre a protocolação do projeto de tombamento e sua abertura pela Fundarpe (Fundação do Patrimônio Histórico e Artístico de Pernambuco).
Altos e baixos afetam o Teatro desde sua construção, na década de 70, como um incêndio em 1980 que fechou suas portas por dois anos, e nos últimos anos problemas de estrutura e recursos foram e voltaram. Desde seu último fechamento, em 2020, o espaço - assim como a Praça Oswaldo Cruz, onde está situado - foi alvo de furtos e invasões, prejudicando inclusive a sede adjunta do Sindicato dos Jornalistas de Pernambuco, que, após diversas denúncias ignoradas, optou por deixar o local.
Enquanto a Cultura perde mais uma de suas peças no jogo de resistência, eu não gostaria de parecer pessimista. Mas as cinzas são difíceis de ignorar, e apenas as cenas do próximo ato nos dirão o que passará. Ainda assim, convenhamos, é difícil de pensar que após anos e anos de pancadas, o Patrimônio Cultural do Estado será finalmente tomado com importância. E que a Arte Pernambucana não será mais uma vez presenteada com as cinzas de uma morte anunciada.