Crítica, por Vitor Celso Jr. *
Durante o verão de 1996 na vila pesqueira da Guaxuma, em Alagoas, a adolescente Tamara (Maya de Vicq) enfrenta a sua iminente mudança para Brasília. Sua vida toma um rumo inesperado quando ela ouve falar de uma menina misteriosa chamada Sem Coração (Eduarda Samara), conhecida por uma cicatriz marcante no peito. Ao encontrá-la, Tamara é imediatamente atraída pela aura enigmática da garota, que passa a desempenhar um papel crucial em sua jornada, influenciando sua percepção do mundo e os rumos que sua vida tomará.
Dirigido por Nara Normande e Tião, realizadores do curta-metragem homônimo que inspirou o longa, o filme é uma coprodução Brasil, França e Itália e conta com a participação da Cinemascópio (BR), produtora independente de Pernambuco criada por Kleber Mendonça Filho e Emilie Lesclaux. Distribuída pela Vitrine Filmes, a mesma da ficção científica Bacurau (2019), o filme captou recursos dos fundos do Funcultura, Fundo Setorial Audiovisual (FSA/Ancine), Aide aux Cinémas du Monde (CNC) e Ministério da Cultura da Itália.
Calçando a tradição de filmes do gênero Coming-of-age, que envolvem histórias de amadurecimento da juventude para a idade adulta, a narrativa do filme dialoga com clássicos importantes do cinema, a exemplo do francês “Os Incompreendidos” ("Les Quatre Cents Coups", 1959), obra inaugural do cineasta ícone da Nouvelle Vague François Truffaut, e, não menos importante, do brasileiro “Pixote - a Lei do Mais Fraco” (1980), do diretor argentino Héctor Babenco.
Este diálogo vai além do cruzamento no gênero citado e se entrelaça tanto em escolhas narrativas, como na decisão de abordar o impacto da violência e o universo da marginalidade social. No campo da estética, a mesma ligação é vista no plano de conclusão de ambos os filmes de Truffaut e Normande e Tião, que apresentam um congelamento da imagem dos seus personagens-título quebrando a quarta-parede para confrontar o espectador e, assim, despertar a sua reflexão.
Por outro lado, as obras também carregam aspectos que as afastam. Diferente das abordagens de Truffaut e Babenco, Normande e Tião exploram a dura perspectiva de futuro dos personagens por um viés mais afetivo e menos visceral, embora não neguem a necessidade de expor as contradições sociais da época e a naturalização da violência que a rondeia. O cenário, por sua vez, espelha o tema da perda de inocência e do amadurecimento tardio e é realçado por algumas escolhas de figurino da direção de arte de Thales Junqueira na seleção de um esquema de cores intenso que contrasta com a forte realidade que engloba a obra.
Sob esse ponto de vista, “Sem Coração” é um filme de vácuos e ausências. Vácuos, atravessados desde a periodização do filme, que ilustram a perda de entusiasmo pós-democratização com o desfecho do governo de Fernando Collor de Mello - temática que, vale a recomendação, também foi evocada por Daniela Thomas e Walter Salles em Terra Estrangeira (1995) -, até a jornada dramática dos personagens, que espelham a demanda por reconhecimento e afeto a partir de diferentes olhares: como a de Binho com a repressão da sua sexualidade, a de Galego com a ausência e negação paterna, a de Tamara com o processo de descoberta da sexualidade e a de Sem Coração, personagem-título, com o resgate da memória de sua mãe falecida.
O mar e a baleia.
Colaborando com a ideia de vácuos e ausências, a fotografia e o design sonoro exploram a espacialidade do filme de modo a ampliar a imensidão do cenário praieiro com o emprego de imagens em planos abertos e áudios que assumem a sua reverberação no ambiente.
Aqui o mar, também cenário da cena antológica de encerramento do filme de Truffaut, sublinha a perspectiva de um futuro incerto e inalcançável. Uma miragem, tal qual vista pela personagem Sem Coração ao se deparar com o cardume de raias. Nesse sentido, a baleia, personagem a parte divulgado até no material publicitário do filme e que conecta os presságios de Tamara e Sem Coração em seus sonhos, materializa o peso dessas inquietações e o temor pelas escolhas que definirão os seus futuros adiante.
Disponível atualmente no catálogo da Netflix, Sem Coração é uma ótima escolha para aqueles interessados pelo retrato de nossa própria história, seja brasileira, nordestina ou mesmo alagoense, e os que buscam uma história calma, reflexiva e, por que não, de certa beleza e poesia.
*Esta publicação contou com a colaboração de Vitor Celso Jr.
Saiba mais sobre o autor : Entusiasmado pelo cinema brasileiro, percorro tanto na área acadêmica, onde sou Mestre em Comunicação e Bacharel em Arte e Mídia, quanto na produção audiovisual, em funções que vão desde a edição de vídeo até a direção de filmes.
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