Indecência e luminosidade: 10 anos do filme “Tatuagem”
Uma década depois, a atemporalidade da obra se dá por seus incômodos continuarem os mesmos.
Luíza Bispo
21 de Novembro de 2023
Em meio a um cenário efervescente da cinematografia local, emerge uma obra que ultrapassa as fronteiras do convencional. “Tatuagem", filme de 2013 que estreia Hilton Lacerda como diretor, nos leva para o caos cultural do Recife dos anos 70. O longa-metragem se firma na contraditória retórica entre autoridade e anarquia, se propondo como um corajoso mergulho nas águas turvas da ditadura militar e, sobretudo, da contracultura pernambucana. Composto por uma paleta de cores vibrantes e uma narrativa que não se prende ao bom gosto, Tatuagem é uma imersão teatral que provoca, desafia e cativa.
(Imagens: Divulgação/ Tatuagem)
Há quem diga que é Fininha quem protagoniza a trama, jovem soldado militar interpretado por Jesuíta Barbosa que se encanta pela subversão artística; outros dirão que é Clécio, líder e figura excêntrica da tal trupe teatral, que ganha vida na atuação de Irandhir Santos - um dos maiores atores nacionais da geração -, que se encanta por Fininha. Mas é o próprio teatro-cabaré Chão de Estrelas que se apresenta como protagonista e caracteriza o filme.
Dialogando erotismo e política, os artistas do Chão de Estrelas personificam o hedonismo e a liberdade sexual com performances satíricas e atos musicais provocadores (vide a inesquecível Polka do Cu) de forma que se mostrava incômoda em 1978 - ano que em se situa a história - e continua sendo na mesma proporção em 2023.
O filme indaga se, enquanto ambiente de expressão artística, o teatro pode ser verdadeiramente livre em uma sociedade onde a censura se faz presente, destacando a complexidade da busca pelo alcance da liberdade artística em um contexto de opressão. Mas, diferente de “Febre do Rato” (2011), longa roteirizado por Lacerda, fruto de sua parceria com o diretor pernambucano Cláudio Assis, “Tatuagem” não procura ser um filme de protesto nem de militância, é um manifesto poético, político e libertário, que utiliza do deboche como arma mais potente.
Uma década depois, a atemporalidade de “Tatuagem” se dá por seus incômodos continuarem os mesmos. Antes mesmo do lançamento, Hilton Lacerda já havia deixado claro em entrevistas que apesar de ser situada 50 anos antes, a obra não é um filme do passado, mas um retrato do presente. Os personagens repetem a todo tempo que, no futuro, o mundo seria melhor. “Era a crença da época, a ideia de que o Brasil ia dar certo”. Hoje, em meio a uma democracia liberal que apenas tolera a classe artística e LGBT+, as feridas que Chão de Estrelas toca continuam abertas.
A epifania da desordem
Com toques de tropicalismo e um quê de Cinema Marginal, as apresentações do Chão de Estrelas são extravagantes e isentas de pudor nas representações de gênero e sexualidade. Para a criação da trupe, Lacerda se inspirou na odisseia teatral recifense que foi o Grupo Vivencial, atuante entre 1974-1983.
O grupo se apresentava em um espaço construído à margem do mangue, nos limites da periferia de Recife e Olinda, em um café-teatro nomeado de Vivencial Diversiones. Eles abriam suas portas para o que havia de mais queer, anárquico e subversivo na arte local, sendo um importante símbolo de resistência nos anos de ditadura militar em nosso país.
Possuindo um cenário cinematográfico marcante e uma trilha sonora extremamente funcional, graças à direção de arte de Renata Pinheiro e canções de DJ Dolores, Johnny Hooker, Dalva de Oliveira e Dolores Durán, “Tatuagem” voltou às telas locais no último festival Janela Internacional de Cinema do Recife, no dia 08/11. Com a presença de parte da equipe de produção, o longa foi reverenciado como clássico local, tendo recém completado uma década de seu lançamento, tamanha é sua atualidade e contemporaneidade.
“O Moulin Rouge do subúrbio, a Broadway dos pobres, o Studio 54 da favela. Bem vindos ao Chão de Estrela!”