Entre os projetos, a cineasta é a representante de Pernambuco no Cena Nordeste Festival e idealizadora da Olar, mostra que valoriza a produção cinematográfica feminina
Diretora, roteirista, atriz e figura com cada vez mais destaque na produção audiovisual pernambucana, Cíntia Lima foi o nome escolhido para representar o estado no Cena Nordeste Festival. A artista está ainda nos bastidores do Observatório Latino-americano de Realizadoras (Olar), uma importante mostra de filmes que põe luz sobre a produção cinematográfica feminina e segue para a segunda edição em outubro deste ano.
Olar recebe curtas-metragens realizados por mulheres e pessoas trans, e também aceita filmes com codireção de homens cis. As produções devem ter até 25 minutos de duração e terem sido realizadas entre os anos de 2023 e 2024. A iniciativa prevê a valorização e a contribuição com a construção de uma memória do cinema produzido por mulheres na América Latina e no Caribe. Os filmes selecionados serão exibidos em outubro - ainda sem data definida - com evento presencial em Carpina, na Zona da Mata Norte de Pernambuco, e também virtualmente.
Para a Manguetown Revista, Cíntia Lima contou um pouco sobre trajetória profissional, projetos e os bastidores dos dois eventos.
Primeiros frames
Foi há 45 quilômetros de sua cidade natal, Carpina, que Cíntia Lima achou o enquadramento para a trajetória profissional. Como estudante de Artes Visuais da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), no Recife, em 2012, a roteirista deu os primeiros passos no setor audiovisual nas funções de assistente de produção e de artes em filmes dirigidos pelo seu professor na época, Marcelo Coutinho.
Para Cíntia, as experiências abriram as portas para um total entendimento do funcionamento de um set de filmagens. Dali pra frente, a produtora se aventurou em uma nova função, a de diretora. O resultado foram os curtas-metragens experimentais “Maldita Poesia”, de 2013, e “Rito”, de 2014.
E não parou por aí. Ainda em 2014, Cíntia experimentou também ocupar o outro lado das lentes. Ela fez parte do elenco do filme “Loja de Répteis”, de Severino - àquela época, ainda Pedro Severien, com quem voltou a trabalhar , em 2022, desta vez como diretora de arte do longa “Fim de Semana no Paraíso Selvagem”. Neste momento, a recepção do público quanto à sua personagem despertaria na atriz um incômodo e, assim, um novo interesse. “O curta foi bem em prêmios e festivais importantes e logo vieram as críticas sobre a hipersexualização da minha personagem negra. Senti que não tinha entendido o roteiro que eu tinha lido e atuado. Então, decidi me dedicar ao estudo e escrita”, explica Cíntia.
Com o novo objetivo em mente e mãos à obra, em 2017, a futura roteirista conquistou a aprovação em uma bolsa do Grupo Mulheres Negras no Audiovisual para aulas de roteiro em São Paulo. O curso era ministrado por Eliseo Altunaga, um dos mais antigos e importantes membros da Escola Internacional de Cinema e Televisão, de Cuba (EICTV). Cíntia conta que a formação deu os primeiros frutos em 2019, já em outra oportunidade.“Escrevi meu primeiro longa no laboratório do Porto Iracema das Artes, recebendo o prêmio Porto/Frapa. Entender as técnicas de construção narrativas e imagéticas a partir do roteiro de cinema mudou totalmente minha visão e forma de criação”, diz.
Após um ano dedicado à construção do roteiro para um primeiro longa-metragem, a diretora precisou retornar às outras atividades no meio audiovisual. Em 2020, no entanto, Pernambuco, bem como o mundo, foi atingido pela pandemia de Covid-19 e, como foi comum a outros projetos, as produções foram suspensas. Neste cenário, Cíntia achou lugar na recente atividade de escrita, passando a atuar como instrutora e consultora de roteiro. Em 2021, ela lança “Nossas Narrativas”, uma formação online e gratuita na área. Depois disso, deu aulas em cursos no Ceará e laboratórios de roteiro para mulheres em Pernambuco e no Espiríto Santo.
Ao colocar o foco sobre a própria trajetória, o ser uma mulher negra é uma angulação importante nas escolhas da profissional do cinema. “Sou fruto de formações para mulheres negras no cinema. Então, nada mais justo que devolver e multiplicar o que aprendi. (...) É sintomático que esses projetos de inclusão cheguem a mim, faz parte de minha história”, explica Cíntia.
Aliança Latina
Olar Filmes, realizadora da mostra audiovisual Olar, é a empresa de produção audiovisual, comandada por Cíntia e por Lilian Alcântara.
"A produtora surge para nos organizar como trabalhadoras e produzir nossos projetos e filmes. Nosso principal projeto de difusão e formação de público é o Olar - Observatório Latino-americano de Realizadoras, um espaço bilíngue (português e espanhol) interessado na promoção de memória e difusão do cinema realizado por mulheres na América Latina”, comenta Cíntia.
Para a realizadora, o evento, que já está na segunda edição, é ainda mais especial por estimular o segmento e contribuir para o acesso ao cinema fora do eixo da Região Metropolitana do Recife (RMR), ainda mais se tratando de seu próprio território. “Estou feliz em fazer da minha cidade um pólo do cinema latino”, afirma.
Cena Nordeste Festival
Olinda, no Grande Recife, recebeu a edição pernambucana do projeto Cena Nordeste Festiva. O evento traz a proposta de ocupar uma cidade da região a cada fim de semana com atrações de diferentes linguagens. A iniciativa é do Consórcio Nordeste, que reúne os nove estados nordestinos em uma aliança jurídica, política e econômica e, agora, também cultural. Para isso, trabalhadoras e trabalhadores do meio cultural foram selecionados para encabeçar cada um dos segmentos.
Cada linguagem recebeu curadoria de um representante de cada estado. O Grafite ficou com Shiko, da Paraíba. A Cultura Popular ficou sob o comando de Lindolfo Amaral, de Sergipe, e Cleonilson Alves, de Alagoas. Amélia Cunha, do Maranhão, foi curadora da programação de Música, mas o Forró teve lugar especial, com Antonio Maciel Ribeiro, do Piauí. Já o Teatro ficou por conta de Fernando Yamamoto, do Maranhão, enquanto a Dança recebeu os cuidados de Andréa Bardawil, do Ceará. Kuka Matos, da Bahia, fecha a equipe, liderando a programação do Circo. Para Cíntia, ficou a responsabilidade de transmitir a riqueza audiovisual do Nordeste.
Cíntia teve as últimas semanas agitadas. Ela conta que o maior desafio foi não poder contar com editais de inscrição para que os realizadores enviassem seus filmes. Dessa forma, a seleção foi totalmente ativa. “A curadoria começou em abril e o festival teve início em maio. Foi um mês intenso de busca ativa de filmes e o contato com produtoras e cineastas para contratação e exibição”, explica. Esse aspecto é também um aprendizado para as próximas edições do evento. “Acho que vai ficar o aprendizado para que a próxima edição possa ser mais democrática aos fazedores e fazedoras da cultura”, completa a curadora.
Nas suas escolhas, destacou-se a diversidade. “Determinei alguns parâmetros para a pesquisa fílmica. (...) Regionalização, para descentralizar as narrativas; diversidade de gêneros cinematográficos; diversidade religiosa, de gênero, raça e sexualidade na direção dos filmes e classificação indicativa majoritariamente livre. Foi um intenso mergulho cinematográfico sobre o que estamos produzindo no cinema nordestino”, orgulha-se Cìntia. Além disso, a circulação em festivais e a realização entre o período de 2020 até os dias atuais também foram considerados.
Dentro da proposta, cada estado recebe a produção cinematográfica de outro. Assim, Alagoas recebeu a de Pernambuco, que, por sua vez, foi espaço de exibições das obras cearenses. “Eu tenho uma relação pessoal com o audiovisual do Ceará, tanto como aluna, quanto como professora, então, foi uma delícia ver os filmes e uma dor selecionar apenas 4 curtas do Estado. O cinema realizado no Ceará é bastante sofisticado no que diz respeito ao domínio cinematográfico e essa seleção conta com de uma geração de cineastas que percorreram os principais festivais de cinema do país”, comenta a roteirista.
Cineasta em todos os ângulos
O trabalho de Cíntia Lima vai além do que para ela aparecem como pontos de destaque de sua mudança de rumo na carreira audiovisual. Entre sets e ilhas de edição, ela já traz no rolo da câmera a direção de arte de um longa-metragem, três curtas e três videoclipes; o roteiro de dois documentários, além dos filmes experimentais realizados no início de seus trabalhos audiovisuais; e oito produções cinematográficas em que participou como atriz.
Confira a lista completa:
Diretora de arte em:
- Longa-metragem “Fim de Semana no Paraíso Selvagem” (2022).
- Curta-metragem “A faísca” (2023).
- Curta-metragem "Rei da Ciranda Pesada" (2023).
- Curta-metragem “Eu Sou Raiz” (2022).
- Videoclipe “Útero” (2018)
- Videoclipe “Eleko” (2018)
- Videoclipe “Bodeado” (2016)
Diretora e roteirista em:
- Rei da Ciranda Pesada (2023).
- Eu Sou Raiz (2022).
- Rito (2014).
- Maldita Poesia (2012).
Atriz em:
- Rio Doce (Fellipe Fernandes, 2023).
- A Faísca (Gabriela Monteiro, 2023).
- O nó do Diabo (Ramon Porto Mota e Gabriel Martins, 2018).
- Tempestade (Fellipe Fernandes, 2019).
- Terra Não Dita, Mar Não Visto (Lia Leticia, 2017).
- Peito Vazio ( Leon Sampaio, 2017),.
- Cheiro de Melancia (Maria Cardozo, 2016).
- Loja de Répteis (Pedro Severien, 2014).
Atualmente, Cíntia prevê seguir com as gravações de um filme no qual trabalha desde 2018, entre um bater de claquetes e outro. Ela faz questão de se definir como otimista diante do cenário atual no que se refere ao setor cultural brasileiro e, engajada em causas sociais e identitárias que é, não deixa de comentar o motivo para o seu esperançar: “sou otimista e estou feliz com a retomada da produção artística após os últimos anos que tentaram sabotar o país. Tenho algumas histórias pra contar e sessões de filmes pra projetar nas telas por aí”.
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