Lançamento do segundo álbum marca o renascimento do grupo de metal pernambucano "Desalma", que, desde 2007, usa o gênero como ferramenta mobilizadora

Iluminado pelos holofotes ou não, o legado do rock permanece revolucionário. Com uma cena que se revela cíclica, bandas nascem e renascem, entre altos e baixos, para comprovar que os efeitos do ritmo não têm data de validade.
Um dos exemplos disso é a banda pernambucana “Desalma”, que, após um longo período de algo que não pode ser considerado um hiato, renasce com o álbum “Contra a Família e os Bons Costumes” (2024). O disco é o segundo da carreira do grupo, e foi lançado 11 anos depois do lançamento de “Foda-se” (2013), produção de estreia.
Com nove faixas, o novo álbum, gravado no Estúdio Pólvora (@estudiopolvora) e aperfeiçoado pelos integrantes há alguns anos, já pode ser ouvido nas “piores” plataformas digitais [metáfora - ou não - que será compreendida mais tarde].
Em uma entrevista exclusiva para a Manguetown Revista, Igor Capozzoli (voz/baixo), Mathias Severien (guitarra), Raone Ferreira (bateria) e Tiago Xaves (guitarra/voz) compartilharam como se deu o “sequestro musical” que resultou na formação da banda Desalma. Além disso, contaram sobre o processo que tornou o grito político o conceito central do álbum “Contra a Família e os Bons Costumes”.
Membros da banda Desalma em entrevista exclusiva para a Manguetown Revista
Imagens: Reprodução/Gabriely Calado
“A nossa singularidade tá na gente misturar um monte de coisa e picotar tudo”
“O Rock significa muito mais do que um ritmo, o rock é um comportamento. O rock de quando surgiu pode não ter nada a ver com o que é feito hoje em dia, mas o espírito de contestação é o que se mantém”, defendeu Mathias.
No final da década de 1970, o mundo pós-guerra pesou nas costas dos mais jovens e os uniu em um movimento de contracultura, o “Punk”. A partir daí, guitarras, baterias e vocais bem intencionados deram espaço para o Hard Rock e Heavy Metal e fizeram do rock uma mensagem. Quanto mais altos e graves os gritos dos refrãos, maior o tamanho da insatisfação.
Ao ecoarem no Brasil, os gritos elevaram o espírito contestador a outras proporções. Em terras pernambucanas, o rock psicodélico da banda Ave Sangria consolidou o gênero que teve a potência aumentada por ter o Movimento Manguebeat como amplificador.
“Talvez isso seja o que diferencia Desalma do Brasil. É uma banda de metal pernambucana que viveu essa geração do Manguebeat”, disse Raone ao relembrar como os efeitos da geração mangue foram sentidos pelos membros da banda que cresceram ouvindo-a desbravar a cena punk e instaurar o metal no Estado. Inspirados, decidiram incorporar essa atitude nas próprias composições.
“Tem muita gente que me conhece no dia a dia, e quando me vê no palco fica ‘caramba’”
De uma juventude unida pelo título de “metaleira” e eletrizada pelo instrumental enérgico de bandas de rock pernambucanas, nasce a banda Desalma em 2007, baseados em um conceito inicial de criar algo a partir de contos de terror e lendas urbanas do Estado. Conceito que logo se dissolveu.
A descoberta da potência presente no vocal de Igor, humildemente resumida por ele com um simples “caramba”, fez a banda chegar a uma conclusão: o heavy metal já havia os sequestrado. O som “groovado” do início dos ensaios ficou em segundo plano com a familiaridade que os três nutriam pelo metal e pela chance de experimentar sonoridades diversas a partir dele.
Nas diferentes fases da banda, o espírito contestador se fez cada vez mais presente
Após 17 anos de história, algumas novas formações e uma realidade se comprovou: não é possível afastar a revolta política da banda Desalma. Com as instabilidades políticas do final da década de 2010 que “Contra a Família e os Bons Costumes” se tornou uma realidade possível e uma reação necessária.
O impeachment da presidente Dilma Rousseff, em 2016, o movimento “Fora Temer” que ganhou força em 2017, e a eleição de Jair Bolsonaro, em 2018, tiveram papel central nisso. Em 2019, com a chegada de Raone, atual baterista da banda, o trabalho se intensificou e uma embalagem para o disco passou a ser criada. Em 2024, com a chegada de Tiago, a banda ganhou mais um guitarrista e a possibilidade de replicar no ao vivo a energia eletrizante construída no estúdio.
Quando não esperavam, as crescentes ondas fascistas e neonazistas que assombram o cenário político atual também pediram por uma resposta. Muito mais que contribuições técnicas, Raone e Tiago somaram significativamente com a mensagem e com a maneira de abordar certos temas dentro do álbum.
“Às vezes é meio caricato você ver determinada situação, mas quando você coloca um sentido naquilo, o direcionamento muda completamente. Fazer um show de rock e falar verdades com aquela raiva e sinceridade, torna-se uma forma muito interessante de fazer política”, destaca Tiago.
O lançamento do segundo disco aconteceu no dia 15 de novembro de 2024 e contou com um show de estreia no emblemático Darkside Studio, localizado no bairro da Boa Vista, área Central do Recife, no dia seguinte. Sem contar a apresentação ao vivo de “Contra a Família e os Bons Costumes” para os fãs da banda Sepultura, no show de despedida da banda mineira, no dia 14 de dezembro, em Recife, o qual a Desalma integrou a line-up.
Contra a Família e os Bons Costumes
PELOS CAMINHOS DO INFERNO: “Pelos Caminhos do Inferno” é a tradução, em forma de música, de uma dinâmica capitalista que tende para o neoliberalismo. Com a soma do vocal brutal à agressividade do blast beat da bateria e da pressão da guitarra, a canção representou, de forma particular, a atmosfera caótica na qual a sociedade se (des)organiza.
VAZIO: A composição da bateria junto a guitarra resulta em um som excepcional que finca na cabeça do ouvinte da mesma forma que os efeitos cruéis da sociedade, tão citada ao longo do álbum, também. Ao se render a esse modelo de controle, “não há saída” e se encontrar “vazio por dentro” se torna o “fim” de alguns.
FUNDO DO POÇO: Nesta faixa, dialogam com o ouvinte ao questionar “quanto vale a vida?” dentro de um modelo que transforma pessoas em meras mercadorias. Em seguida, bravejar, em uníssono, a metáfora “fundo do poço” como um destino comum de quem se encontra refém da ideologia “pentecostal, cristã, coach, quântica”, caracterizada por Raone.
Confere o clipe de "Fundo do Poço":
ME ENTERREM: É a consequente revolta após se desalienar e conseguir ver por trás das máscaras que escondem o verdadeiro “show de horror” presente nos discursos de “tradicional família” e de “bons costumes”.
EXEMPLO: A partir da quinta faixa do álbum o centro da narrativa passa a ser um grito por mobilização contra o que sustenta esse modelo que mais atiça o caos do que o desencoraja. Nesta, Igor reafirma que vão continuar usando o heavy metal para expor a covardia de quem mantém os “Messias do Retrocesso” como “exemplos de (bom) caráter”.
A MÁQUINA: Com acordes e vocais mais acelerados, a banda conseguiu traduzir o quão rápido é o funcionamento da estrutura neoliberal que se assemelha ao trabalhar de uma máquina. Esta que gera lucros enquanto o sangue dos operadores escorre.
33: O peso de questionar “até quando” a tríade “Deus, pátria e família” vai amparar a criminalidade? “Até quando não enxergar” que quanto maior a oferta, maior o crédito do perdão? Ou mesmo “até quando ignorar” que essa estrutura faz um rico se safar e o pobre ser acusado injustamente? faz a frequência dos vocais de “33” tomarem proporções cada vez maiores.
SABOTAGEM: Esta é um verdadeiro banho de água fria. “Trabalhar, correr, lutar e sobreviver” são realmente os únicos direcionamentos que determinada parcela da população têm para seguir? Nesse sentido, relembram que se “conformar é morrer” e que “desobedecer” é um dos caminhos para se libertar dessas engrenagens.
NÃO EXISTE DEUS EM MIM: Na nona e última faixa, questionam “esse é o teu Deus?” e negam acreditar que essa figura divina esteja a favor dessa desordem e que essa apoteose justifique a matança mental e física da população.
A banda Desalma assumiu a responsabilidade de carregar o título “Contra a Família e os Bons Costumes” e deu o nome. A complexidade presente nos 17 minutos e 53 segundos de duração pode aparentar ser um desafio sonoro, mas, na realidade, chega ao fim com todo o gás para furar a bolha e conquistar o público que não está familiarizado com o metal.
No fim, o desejo é que o conteúdo do álbum se torne apenas um registro cru e sincero dos efeitos brutais do capitalismo defensor dos lucros, do falso moralismo e da religiosidade compulsória na sociedade. Enquanto não, o álbum convoca os ouvintes a soltar as amarras do conformismo e a agir para impedir que o caos continue conduzindo a sociedade.
Revista em quadrinhos da banda Desalma promove álbum "Contra a Família e os Bons Costumes".
Mais informações sobre como adquirir estão nas redes sociais do conjunto (@desalma666)
Créditos: @elefantesnasala
“Contra a Família e os Bons Costumes” está disponível no que os membros da banda Desalma chamam de “piores” plataformas digitais. Com essa pequena ação, a banda que demorou para decidir se subiria o álbum para os principais streamings, reforça o quanto os donos dessas plataformas não dão o devido valor ao trabalho dos conjuntos independentes, mas permanecem com o monopólio do reconhecimento.
Por isso, não deixe de acompanhar os próximos trabalhos da banda que não tem pretensão de parar e veja como a cena rock pernambucana está mais ativa do que nunca. A banda Desalma está no Instagram como: @desalma666
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