João Cabral de Melo Neto e o Recife: as margens dos rios no concreto da poesia
- Isabel Bahé

- 14 de jan.
- 4 min de leitura
O poeta, que completou 105 anos em 2025, fez do Recife um microcosmo do Brasil
Na última quinta, 9 de janeiro de 2025, celebramos os 105 anos do escritor e poeta João Cabral de Melo Neto, considerado a maior voz da poesia de língua portuguesa por escritores como Mia Couto. Além de escritor e poeta, João Cabral foi crítico, jornalista, que começou sua trajetória ainda pequeno no Diário de Pernambuco, e como jogador juvenil do Santa Cruz.
Como um belo paradoxo poético, marcado pela emoção e o distanciamento, João Cabral traça em sua obra uma planta de Pernambuco no seu tempo. Seu retrato é tão sóbrio e preciso que, alinhado ao conhecimento das paisagens humanas e geográficas, o escritor ficou conhecido como “poeta-engenheiro”. Além da presença quase fixa do seu estado natal nos escritos do poeta, Recife também se mostra um eixo simbólico em sua obra, um personagem que moldou a forma singular como ele enxergava o mundo.

O Recife de João Cabral de Melo Neto
João Cabral nasceu em 1920, no bairro da Madalena, Recife, inserido numa família tradicional política de Pernambuco. A influência familiar também seguia para a literatura: Cabral era primo paterno de Manuel Bandeira e materno de Gilberto Freyre. Na juventude, foi amigo do Joan Miró e do poeta Joan Brossa.
Nesse mesmo período, dividiu seus anos entre a capital e o engenho de São Lourenço da Mata, onde desenvolveu a sensibilidade para o ritmo da vida rural, porém mantendo como sua base de formação imaginativa. Na época, a cidade fervilhava em contrastes: o mangue dividia espaço com o casario colonial, enquanto as desigualdades sociais coexistiam com uma vida cultural intensa.
Fã de esportes, João Cabral de Melo Neto foi jogador do Santa Cruz antes de partir para a função de poeta, chegando a ganhar o campeonato juvenil de 1935. “Descobriram que a minha mãe era fanática pelo Santa Cruz, embora nunca tenha ido a um jogo de futebol. A diretoria do Santa Cruz, então, foi pedir à minha mãe que me fizesse jogar pelo Santa Cruz. Joguei. Disputei o campeonato com o Torre e fui campeão juvenil pelo Santa Cruz”.
No entanto, apesar de jogar pelo time coral, o escritor realmente era torcedor do América-PE, dedicando inclusive um poema para o time: “O desábito de vencer não cria o calo da vitória; não dá à vitória o fio cego; nem lhe cansa as molas nervosas.”
Ainda novo, tinha plena convicção que as palavras teriam de ser sua profissão. Foi com o pai à redação do Diário de Pernambuco porque queria de todo o jeito ser jornalista. Aníbal Fernandes, amigo da família, olhou para o senhor Luiz Antônio e disse que João ainda era muito novo para exercer a profissão. Teimoso, João Cabral decidiu estudar para ser crítico literário, a idade novamente foi o empecilho. Foi então que decidiu dedicar seu tempo à escrita.
João Cabral observava tudo com curiosidade: o movimento das águas do Capibaribe, o vaivém dos trabalhadores, o bulício dos mercados. Essas imagens, mais tarde, seriam transformadas em poesia – mas sempre com uma abordagem crítica, desprovida de idealizações.
Recife, apesar de terra natal do poeta, não é protagonista da sua obra. A capital pode ser interpretada como um ponto de partida simbólico, um espaço de tensões entre espaços e condição humana que ele transcreveu em poesia com rigor quase matemático. Cabral não era poeta de musas nostálgicas: capturava a beleza do lugar sem esconder a sujeira que encontrava pelo caminho.
No poema O Rio (1953), o Capibaribe emerge como uma metáfora do Recife e de seus contrastes. O rio não é descrito com lirismo convencional, mas com a austeridade que lhe era peculiar: um elemento que carrega vida e história, mas também a dureza das desigualdades e das lutas cotidianas de quem vive às suas margens. O poema reflete a relação de João Cabral com o Recife: ao mesmo tempo íntima e distante.
Em Morte e Vida Severina (1955), a peça que talvez melhor simbolize a obra de João Cabral, o Recife é o destino final dos retirantes do sertão. No entanto, a cidade não aparece como uma promessa de salvação ou um oásis urbano. Pelo contrário, ela é um espaço de desafios, de vida precária, de incertezas que espelham a própria condição humana. João Cabral, que não é muito apegado à sua obra-chave, tinha em mente um romance feito para rodas de escuta de pessoas que conviveu no engenho, mas não conseguiu cumprir seu papel.
“Uma coisa que me decepcionou é que quando eu escrevi ‘Morte e Vida Severina’ estava pensando nessa gente, como aquela do engenho, que não sabe ler e ficaria escutando. Quando o livro foi publicado, dei para o Vinícius [de Moraes] e ele veio com o maior entusiasmo. Eu então disse: ‘Olha, Vinícius, eu não escrevi este livro para você e sim para o público analfabeto. Mas estou vendo que quem gosta do livro são os intelectuais.[...]. Foi ingenuidade minha, ‘Morte e Vida Severina’ não chega ao povo analfabeto que consome os romances de cordel”, contou em entrevista à Folha de São Paulo em 1991.

O legado de um poeta exilado
Embora João Cabral de Melo Neto tenha passado boa parte de sua vida fora do Recife – seja no Rio de Janeiro, onde ingressou na carreira diplomática, seja em países como Espanha, Senegal e França –, seu olhar sobre a capital pernambucana era o de um exilado criativo: alguém que retorna à cidade, não fisicamente, mas pelo filtro de uma memória precisa e muitas vezes implacável.
O distanciamento geográfico permitiu a João Cabral uma perspectiva analítica sobre sua terra natal. Ele não se deixou levar por um regionalismo sentimental ou idealizado. Ao contrário: ele explorou o Recife com a frieza de quem deseja compreender suas engrenagens. Em sua obra, é uma cidade concreta, feita de ruas, rios e mercados, mas também de trabalho árduo, desigualdades e luta pela sobrevivência. Em outras palavras, ele achou em Recife um microcosmo do Brasil.



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João como jogador do Santa Cruz foi uma baita descoberta!!!
Grande João Cabral de Melo Neto!