Expressão cultural popular pernambucana transmite resistência e ancestralidade por meio dos caboclos
Texto de Leandro Lopes e Thales Martins
"Eta eta Jurema, eta eta Jurema,
Eta eta Jurema, eta eta Jurema,
Salve os reinos da Jurema,
Canindé e Pajuçá,
Pedra branca lá de grande e o reino do fundo do mar."
Assim inicia o hino da Jurema Sagrada, entoado pela maioria dos que fazem parte dessa religião afro-indígena. Originária do Nordeste, a Jurema Sagrada carrega consigo uma força de cura incomparável, uma conexão espiritual profunda e o contato direto com os seres do mundo espiritual.
A relevância ultrapassa as práticas religiosas, pois a relação entre essa fé e o caboclinho é uma das mais significativas expressões culturais dessa tradição ancestral. O caboclinho, manifestação cultural e religiosa de raízes indígenas e afro-brasileiras, se coloca como símbolo da luta pela preservação da identidade e da resistência cultural de um povo que sempre esteve à margem da sociedade, muitas vezes por conta da sua religião.

Nesta reportagem especial para o Carnaval, a Manguetown Revista traça uma conexão essencial para entender a importância dos caboclinhos. Isso vale não apenas durante a folia, mas na luta constante por respeito, aceitação e, sobretudo, pelo direito de ser cultuado de maneira legítima por aqueles que desejam vivenciar essa espiritualidade, em especial o culto da Jurema Sagrada.
A resistência cultural e religiosa dos caboclinhos está entrelaçada com a religiosidade da Jurema Sagrada, tornando-se uma jornada de preservação de práticas ancestrais e de combate ao preconceito. Foi forjada principalmente pelos caboclos, que representam a personificação espiritual dos povos indígenas na Jurema. Dentro do universo dos caboclinhos, o caboclo é a figura central, simbolizando a conexão direta com o sagrado. Através deles, os participantes dessa tradição tornam-se mediadores entre o mundo físico e o espiritual, recebendo sabedoria, proteção e cura.

A mestra Jeane Gonçalves Ferreira, membro do Caboclinho União Sete Flexas, de Goiana, na Zona da Mata pernambucana, compartilha com a Manguetown Revista que iniciou a jornada religiosa ainda na infância, aos cinco anos, quando ingressou em um grupo de caboclinho que pertencia à sua família. Foi através do caboclo Sete Flechas, no entanto, que se manifestou em seu pai, que sua ligação com a Jurema Sagrada se intensificou. O caboclo Sete Flexas, regido por sete orixás, simboliza a união das forças ancestrais e espirituais que alimentam a religiosidade e a cultura do grupo.
"O Caboclo Sete Flexas é protegido pelos sete orixás: Oxossi, Ogum, Xangô, Iansã, Iemanjá, Oxum, Omulu e Obaluaê. Ele tem a missão de representar essas forças na Terra e trazer à nossa comunidade a proteção e os ensinamentos dos nossos ancestrais", explica Jeane.

Além de Geane, Paulo Sérgio dos Santos Pereira, membro do caboclinho e conhecido como mestre Paulinho Sete Flexas, compartilhou com a Manguetown Revista um pouco da história do Caboclinho Sete Flexas, de Recife, um dos mais antigos e relevantes caboclinhos do estado, localizado no bairro de Água Fria, Zona Norte da capital. Natural de Maceió, Alagoas, Paulinho cresceu imerso na tradição do caboclinho, herdando a paixão do pai, Zé Alfaiate.
A religiosidade já fazia parte da trajetória do grupo antes mesmo de sua fundação. O mestre Paulinho relembra como o pai, que era babalorixá de um terreiro de Umbanda, fundou o caboclinho, em 7 de setembro de 1971. "Eu tinha um irmão muito doente, a ponto de o médico dizer que ele não sobreviveria. Foi então que meu pai teve um sonho com o Caboclo Sete Flexas e fez um pedido: se meu irmão se recuperasse, ele fundaria o Caboclinho Sete Flexas. Com o tempo, meu irmão começou a melhorar, e em seis meses já estava recuperado. Diante disso, meu pai cumpriu a promessa e fundou o caboclinho em homenagem ao caboclo", conta.

A conexão com a infância é o ponto crucial que une ambos os membros dos caboclinhos: um na região metropolitana do Recife e outro no litoral norte de Pernambuco. Jeane se aprofunda e descreve a Jurema Sagrada, que, para ela, é mais do que uma simples tradição religiosa; é uma fonte constante de proteção e força.
"A Jurema é o que me sustenta, me fortalece e me guia todos os dias. Passamos por muitos desafios, como o preconceito por sermos filhos de um médium, mas sempre fomos protegidos pela força dos caboclos e orixás. A Jurema Sagrada é a força que me move, me permite trabalhar sem parar e estar em constante conexão com o espiritual", compartilha Jeane, com a mesma devoção que carrega desde a infância.

Essa ligação com o sagrado, tanto espiritual quanto cultural, faz com que o Caboclinho União Sete Flexas se apresente não apenas como uma dança, mas como uma poderosa forma de resistência cultural. A cada passo, a cada movimento durante o Carnaval, o grupo reafirma seu compromisso com a preservação das tradições afro-brasileiras e com a luta contra a opressão histórica que esses povos enfrentam.
O caboclinho é, assim, muito mais do que uma festa. Ele é uma expressão viva da resistência, da espiritualidade e da identidade de um povo, uma luta contínua pela valorização de suas raízes, pelo respeito à sua religião e pela liberdade de ser quem são, sem medo de se conectar com a sua ancestralidade.
O impacto cultural e social da jurema nos caboclinhos
A importância de preservar o legado da Jurema Sagrada e a história do Caboclinho União Sete Flexas de Goiana é inegável. "É fundamental valorizar a história de todos os grupos, não apenas o nosso. A Jurema Sagrada e o caboclo Sete Flexas são símbolos de resistência. Ao preservar essas tradições, mantemos vivas as nossas raízes, nossa identidade e a nossa cultura. E, ao fazer isso, também lutamos contra o preconceito e as desigualdades sociais que ainda persistem", afirma Jeane.
O impacto social é claro, pois o grupo contribui para a formação de uma comunidade forte, unida pela fé e pela cultura. Os membros do Caboclinho União Sete Flexas de Goiana não são apenas praticantes, mas uma verdadeira família espiritual, que se apoiam mutuamente e transmitem esses valores às novas gerações.
Neste Carnaval de 2025, será um momento de grande significado para o Caboclinho União Sete Flexas de Goiana. Jeane compartilha o entusiasmo e o trabalho árduo que envolvem a criação das fantasias e o planejamento das apresentações.
"O Carnaval é uma época crucial para nós, pois é quando representamos nossas tradições e mostramos o que somos. Neste ano, o foco será celebrar a missão do Caboclo Sete Flechas, que foi abençoado pelos sete orixás. Cada passo que damos no desfile é uma forma de honrar essa missão e a proteção dos orixás", diz a mestra, com emoção e dedicação.
O Caboclinho Sete Flexas do Recife, que começou com apenas sete integrantes, também tem um papel fundamental para o Carnaval Pernambucano. "Para quem começou com apenas sete integrantes, chegar a 132 componentes na passarela é um trabalho árduo e de muita dedicação", comenta Paulinho, um dos responsáveis pela trajetória do grupo.

Há cinco décadas, o Caboclinho Sete Flexas se apresenta anualmente no Carnaval, mas a preparação para esse grande momento começa bem antes. "A gente ensaia a partir de setembro, no dia 7, que é o aniversário do grupo. Fazemos uma grande festa, recebemos outras brincadeiras em homenagem e, em seguida, entra o caboclinho dançando. Dançamos por uns 30 minutos, cortamos o bolo e celebramos. É bom demais!", conta Paulinho com entusiasmo.
Os ensaios seguem todos os domingos, de setembro até o Carnaval, afinando cada detalhe da apresentação. Durante a folia, o grupo percorre diversos polos culturais, como no Recife Antigo, Jaboatão, Camaragibe, São Lourenço, Goiana, entre outras cidades, levando consigo a resistência e a ancestralidade que são características fundamentais de sua trajetória.
Além disso, Paulinho enfatiza a importância de continuar preservando essa cultura que entrelaça religião e Carnaval, ressaltando que, embora a festa seja um momento de grande visibilidade para o Caboclinho, a verdadeira missão vai muito além dessa época do ano.
"Rapaz, essa história para mim é tudo. Sem o caboclinho, eu não sou nada. Respeito todas as brincadeiras, como Maracatu, Frevo, Cavalo Marinho, Afoxé, mas onde houver um caboclinho, por mais simples que seja, eu amo. Só durmo feliz pensando nos caboclinhos. É uma alegria", compartilha Paulinho, com profunda devoção, reafirmando o compromisso do grupo em manter a cultura e a tradição vivas ao longo de todo o ano.

Os caboclinhos, com suas conexões indissociáveis à Jurema Sagrada, é mais do que uma manifestação cultural no Carnaval; é um símbolo vibrante de resistência, ancestralidade e luta pela preservação da identidade afro-indígena. A cada movimento, os caboclinhos não só celebram a riqueza de suas raízes, mas também desafiam o preconceito, mantendo vivas tradições que transcendem o tempo e o espaço.
No Carnaval, momento de visibilidade, os grupos reafirmam seus compromissos de preservar a religiosidade, a espiritualidade e o culto da Jurema. Tudo isso para tornar-se um farol de força e união, sempre conectado com a ancestralidade e a missão de seguir resistindo, celebrando e lutando contra as opressões históricas que ainda persistem.
A Manguetown Revista destaca a importância de dar visibilidade a esses grupos, reconhecendo o valor e a riqueza cultural que eles representam. Abaixo, seguem as redes sociais de ambos os caboclinhos que contribuíram para a criação desta reportagem:
Caboclinho União Sete Flexas de Goiana
Instagram: @uniao7flexasgoiana
Caboclinho Sete Flexas do Recife
Instagram: @caboclinho7flexasterv
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