Aberto no centro do Recife desde 1981, a história do bar se mistura com a dos seus frequentadores, e também com o de movimentos sociais e da própria cidade.
Por Tawan Batista*
Quando falamos da vida noturna no Recife, geralmente nós pensamos naquela casa de shows onde vamos ver um artista local, ou então no bar que muita gente vai toda sexta à noite. A cidade tem diversos pontos de encontro que já são amplamente conhecidos pelos seus moradores, e um ganhou destaque nesse ano por ter se tornado Patrimônio Cultural Imaterial, o Pagode do Didi.
O bar foi criado em 1981 por Vlademir de Souza Ferreira, o Didi, que estava desempregado neste período. Ele encontrou um espaço vago na parte de trás da Secretaria de Educação, no bairro de Santo Antônio, e ali decidiu abrir o bar de forma temporária, já que pretendia ficar por ali durante apenas dois anos.
Para animar o público que frequentava o bar, Didi decidiu chamar alguns tocadores de seresta para cantar no estabelecimento. Pouco tempo depois, passou a abrir espaço para rodas de samba e pagode. O estabelecimento rapidamente passou a ser frequentado pelas pessoas da Região Metropolitana do Recife, após o horário de trabalho para aproveitar um momento de lazer, ou para curtir uma sexta-feira à noite com os amigos. Foi assim que, ao longo da década de 80, o pagode passou a se tornar cada vez mais frequentado.
Escola para os artistas, casa para os clientes.
Os frequentadores da época lembram com saudosismo da roda de pagode do local e recordam do ambiente. A yalorixá mãe Miriam de Xangô, do terreiro Ilê Axé Aganju Ase Oba conta sobre sua experiência no estabelecimento na época:
“Em mais ou menos 1988, conheci o Didi, uma pessoa maravilhosa e sempre simpática. O Pagode do Didi foi um ambiente que eu frequentei por mais de 20 anos, e hoje em dia vou lá de vez em quando e encontro muita gente daquela época. Foi um dos primeiros pagodes de mesa que eu conheci aqui em Recife.”
Além de atrair o público, o lugar passou também a se tornar um dos principais redutos do samba recifense. Diversos cantores passaram a se apresentar nas rodas de samba do Pagode do Didi, sendo considerado por muitos o quartel-general do samba na terra do frevo. O título não vem à toa, já que o estabelecimento é o primeiro pagode ao ar livre da capital pernambucana, fazendo com que o próprio Didi participasse da formação de diversos músicos, compositores e grupos de samba e pagode do estado.
“Iniciei no Pagode do Didi vai fazer 39 anos já. E, assim, era muito bom. Uma roda de samba sem caixa de som, e eu era a única mulher fazendo partido alto na roda de samba no gogó, que não tinha microfone na época. Mas era muito bom. Eu gostei muito da roda de samba de lá e fui ficando, fui evoluindo. Foi muito massa, muito legal”, contou Maria Pagodinho, sambista e uma das artistas que participaram e que até hoje se apresenta nas rodas de pagode do bar.
A cantora, que foi a primeira mulher fazendo partido-alto nas apresentações do local, acompanhou as mudanças que aconteceram nas apresentações que ocorrem nas rodas de pagode, como a compra de equipamentos para as apresentações, a chegada de novas cantoras mulheres nas rodas de samba e também a especialização dos cantores:
Espaço para a negritude
Além da forte relação com os cantores que passaram por lá, o estabelecimento também tem uma ligação muito especial com as forças da militância negra aqui do estado, mais especificamente com o Movimento Negro Unificado (M.N.U), um dos maiores movinentos de militância negra da América Latina. Nos anos 2000, os integrantes do M.N.U queriam realizar um evento que contemplasse as produções musicais de artistas negros do estado.
“A Terça Negra começa em 2000, no pagode do Didi, mas antes disso nós tivemos uma reunião onde nós participamos no Pina, onde nós reivindicamos as autoridades estaduais da Fundarpe, que deveriam investir mais em cultura afro, porque quem está todos os dias nas comunidades fazendo com que as comunidades tenham um pouco de paz, era a cultura negra, a cultura afro”, contou Adeildo Araújo, um dos membros do movimento e idealizador do evento da terça negra.
O plano dos integrantes do M.N.U era de trazer parte do investimento em cultura realizado pelo poder público para as manifestações culturais realizadas pelas negras do estado. Vendo que havia pouco diálogo entre as comunidades negras e o governo, surge a ideia de criar um polo afro no centro da cidade, e o primeiro local pensado foi o Pagode do Didi.
"Nós fomos conversar com Didi, que disse: ‘olha, aqui é o local de samba, mas passa aqui em tal dia que eu vou falar com meus familiares para ver se o espaço pode ser liberado para vocês.’ Voltamos depois no dia marcado com ele, e ele disse que seria cedido o espaço nas terças-feiras", explicou Adeildo, sobre o surgimento do nome do evento, que ficou sediado no Pagode do Didi de 2000 a 2001.
Essa história atraiu várias pessoas para o Pagode do Didi ao longo dos anos, e até hoje o lugar é um dos principais pontos de encontro do centro do Recife. Atualmente, além daqueles que já iam para o bar desde sua abertura, o estabelecimento tem atraído um público mais jovem para as rodas de pagode.
Entre o reconhecimento e a desvalorização
“Quando eu comecei a frequentar mais forte o pagode, eu comecei a ir com os meus amigos, que eu fiz aqui na universidade, que se tornaram amigos de vida também”, contou a estudante do curso de cinema da UFPE, Maysa Carolino, sobre sua relação com o Pagode Do Didi. Foi a partir da experiência no lugar e da sensação de acolhimento no bar que Maysa decidiu começar o projeto de um documentário sobre o Pagode junto de seus amigos. "E aí a gente começou a frequentar, e como todo mundo faz cinema, a gente disse ‘caramba, até hoje não tem um documentário sobre o Pagode Do Didi. É uma coisa que deveria ter sido feita antes, vamos tentar fazer? Vamos escrever esse projeto em algum lugar.’ E aí bateu justamente na época da lei Paulo Gustavo."
Após surgir a ideia de realizar o documentário, Maysa contou que a conversa com o Didi e com a sua família para a autorização do uso do espaço para as filmagens foi bem recebida, e os planos de inscrever o projeto no edital da lei Paulo Gustavo deram certo.
Apesar do reconhecimento popular dado ao Pagode do Didi e da sua importância histórica tanto para o samba e para a cultura pernambucana quanto para o movimento negro recifense, o lugar passa por diversas dificuldades, relacionadas principalmente a um processo de gentrificação que tem dificultado o acesso de diversas pessoas ao centro da cidade.
Além disso, o estabelecimento se encontra em um local pouco valorizado pelo poder público, principalmente quando se trata de segurança e infraestrutura local. O bairro de Santo Antônio, onde fica o estabelecimento, passa por situações de falta de policiamento e, por consequência, as pessoas que passam pelo local acabam se sentindo inseguras ao voltar para casa, principalmente no horário da noite. Um dos tristes exemplos dessa situação foi o crime que aconteceu no lugar na madrugada do dia 3 de agosto, quando um jovem foi morto a tiros na região próxima ao bar.
“O que a gente lamenta muito é que esse lugar de referência para muita gente não recebe a devida atenção do poder público. Quando a gente pensa que o centro do Recife tem sido um local cada vez mais desvalorizado, um local onde a gente vê a falta de iluminação pública, a gente vê um alto índice de violência, de assalto, onde as pessoas, mesmo com as linhas de transporte público que passam por aquele local, muitas pessoas não querem se arriscar, dependendo do horário da noite, a utilizar esse transporte público, porque não se sente seguro e o Didi está dentro desse circuito onde o centro da cidade está cada vez mais esvaziado, cada vez menos valorizado”, contou Giovanna Carneiro, jornalista, mestra e pesquisadora da Universidade Federal de Pernambuco.
Mesmo com a criação de projetos para movimentar e revitalizar o centro do Recife, como é o caso do Recentro, programa lançado em 2021, é perceptível que ainda podem ser feitas outras ações e projetos do poder público para a valorização desses lugares que já são tradicionalmente frequentados pelos visitantes do centro da cidade.
O Pagode Do Didi, apesar de tudo, segue existindo e resistindo, mesmo com essas questões, sendo um dos principais pontos de encontro da cidade do Recife e, acima de tudo, sendo referência para a população quando o assunto são os encontros de samba e pagode da RMR. E a esperança que fica é a de que agora, com o título de patrimônio cultural imaterial do estado, o poder público passe a olhar com a mesma atenção que os frequentadores têm desde sua inauguração até os dias de hoje.
* Esta reportagem foi produzida por Tawan Batista, estudante de jornalismo da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), e publicada em parceria com a Manguetown Revista.
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