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Foto do escritorLetícia Barbosa

Os filmes que não passaram no Cinema São Luiz (parte I): qual o impacto do fechamento de salas de exibição de rua na cadeia produtiva audiovisual?

Atualizado: 17 de nov.

Diante de um cenário crescente de redução desses equipamentos culturais, parte da produção nacional e internacional que não é subsidiada por grandes distribuidoras tem sua difusão limitada


Foto: Eduardo Cunha/ Divulgação

*Reportagem produzida com colaboração de Thales Martins


No dia 1º de novembro, durante o Festival Janela Internacional de Cinema do Recife, a capital pernambucana sentiu o gostinho de experienciar novamente aquela que é uma das principais salas de exibição de rua do Estado, o Cinema São Luiz. O ponto ficou de cerca de dois anos fechado, e, nesse período, um vasto conjunto cinematográfico não teve a oportunidade de ser exibido no espaço. 


Filmes pernambucanos como “Propriedade” (2022), de Daniel Bandeira, “Carro Rei”(2022), de Renata Pinheiro, “Retratos Fantasmas” (2023), de Kleber Mendonça Filho, e “Sem Coração”(2023), de Nara Normande e Tião, atingiram ampla repercussão. Entretanto, algumas produções contam com a independência e função de ser dos cinemas de rua para chegar ao público. Isso acontece diante de fatores como acordos com distribuidoras, altos investimentos em marketing e o próprio formato mais chamativo de longas-metragem que tomam espaço da maioria das salas país afora.




O que dizem os números?


De acordo com o Informe Anual da Agência Nacional de Cinema (Ancine) referente ao ano de 2023, ao todo, o Brasil contou com 272 filmes exibidos, sendo 239 totalmente nacionais e 32 com coprodução internacional. Já os Estados Unidos, uma das maiores indústrias cinematográficas que costuma ocupar um valor significativo da bilheteria brasileira, exibiu 186 filmes no país. 



Apesar da cinematografia nacional liderar os números de produções exibidas no Brasil, esse valor não repercute no público. O relatório revela que 3.701.853 pessoas foram ao cinema para prestigiar filmes brasileiros e 99.201.177 preencheram as cadeiras das salas para exibições estadunidenses. Essa diferença tem impacto ainda na renda proveniente da venda de ingressos. Enquanto a produção local arrecadou R$ 67.095.990,16, a do Estados Unidos, atingiu o valor de R$ 1.954.422.283,75 .


O mesmo cenário se repete na comparação com os filmes europeus exibidos no país, por exemplo. Os 105 longas-metragem, número 38% menor que as exibições brasileiras, angariaram R$ 44.963.561,63  em sua bilheteria, com um público de 44.963.561,63 pessoas. Isso corresponde a 67% a mais que o índice de produções  do território nacional. 


Já as produções asiáticas, africanas e de países da Oceania e da América Latina atingiram números menores que os brasileiros, e também representam peças cinematográficas  que precisam de espaços que não se guiem a princípio pelo lucro. 


Outro dado relevante é refletido nas distribuidoras que conseguem emplacar seus filmes no circuito. Apenas quatro produtoras brasileiras aparecem com números significativos, e só uma delas atinge sozinha 6% do total de exibições e pouco mais de 8% de público. Resultados distantes de estúdios como Warner e Disney, que lideram a lista com  49% e 21% de espectadores, respectivamente.



As estrangeiras Warner e Disney são também as responsáveis pelos líderes dos filmes internacionais e o terceiro lugar entre os nacionais mais assistidos em 2023 nos cinemas. 



Entre os nacionais, “Retratos Fantasmas” é a única produção pernambucana a ocupar a lista dos 20 filmes mais assistidos no país em 2023.

 

E o que o São Luiz tem a ver com isso?


“A árvore dos frutos selvagens”, de Nuri bilge Ceylan, é o filme que Luiz Joaquim da Silva Júnior gostaria de assistir na tela grande cercada pelos vitrais do Cinema São Luiz.

Foto: Osmário Marques/ Divulgação

Jornalista de formação, ele é o atual coordenador da Cinemateca Pernambucana e também do Cinema da Fundação Joaquim Nabuco (Fundaj), equipamento que costuma estar na lista de cinemas de rua recifenses e acolheu boa parte do público órfão durante o período de obras do vizinho localizado no bairro  da Boa Vista. 


Luiz, inclusive, viu o filme no Cinema da Fundação. “Um filme turco. Cinema de primeira grandeza, não só no conteúdo, mas na forma, na plástica. Ver esse filme naquele cinema [São Luiz] seria catártico”, comenta. A sua escolha representa o tipo de produção que costuma ser difundido nos cinemas de rua, garantindo o acesso das pessoas a conteúdos diversificados e fora do mainstreaming


Para o jornalista, cinema de rua pode ser definido a princípio pela localização. “É qualquer sala que tenha um princípio  não comercial, qualquer sala de cinema privada ou pública que não esteja dentro de um meio comercial,  ou seja, que essa sala funciona independente dos vizinhos comerciais. É o caso  do Dragão do Mar, em Fortaleza, da Glauber Rocha, em Salvador, da Capitólio, em  Porto Alegre, e o Cinema da Fundação Joaquim Nabuco”, explica.


 Mas outras características ampliam esse conceito. “Ainda que a gente [Cinema da Fundação] não esteja de frente para a calçada, podemos entender como cinema de rua, sim. Porque as pessoas quando vêm para essa sala,  todas essas que eu falei, inclusive o Cinema da Fundação, vêm em função do filme, e não arriscando ver um filme no [Google] Maps e quando chegar lá, encontrar a sessão esgotada e vai ver um outro filme que não tinha nem originalmente planejado assistir, o que é possível porque está disponível numa outra sala, sei lá, a número 3 do complexo”, aponta. 


Foto: Reprodução de redes sociais

A realizadora audiovisual e professora do Departamento de Comunicação Social da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), Mannuela Costa, concorda com Luiz, e evidencia ainda o papel fundamental dos cinemas de rua no ciclo de circulação para produções independentes ou de menor investimento que não concorrem de forma igualitária com os chamados blockbusters.





 “Em geral, o que motiva a programação dos cinemas mais comerciais é justamente o grande público. E quando falamos de grande público, falamos de filmes que vão ter uma grande promoção, são filmes que, muitas vezes, já são continuações, são franquias e na maioria das das vezes são distribuídos por distribuidoras internacionais que eventualmente têm escritórios que operam no Brasil”, explica.

Nesse sentido, os filmes que não recebem suporte de grandes empresas sofrem com a dificuldade de fechar o ciclo de circulação no qual precisa ser exibido e alcançar bilheteria suficiente para que os recursos retornem para os agentes envolvidos, sendo eles o exibidor, o distribuidor e o produtor. “Se o filme vai dar público, ele ganha mais salas e, várias vezes, de maneira predatória, ou seja, ocupando quase todo o parque exibidor brasileiro que já não é tão grande e que é concentrado em grandes cidades e maioria no litoral”, continua.


Luiz se soma ao argumento. “Quando a gente se dá conta que muitas salas  sumiram e que o circuito exibidor brasileiro é muito pequeno, considerando o território nacional,  percebemos o quanto o Brasil ainda é muito pobre nesse segmento do audiovisual, que é a difusão cinematográfica, a exibição de filmes”, defende.


Para ele, o hábito de consumir filmes em casa se distancia do que é a experiência do Cinema. “A gente tem ‘n’ plataformas de streaming e alguns títulos, ou muitos títulos que circulam por essas plataformas, mas  a essência do que o cinema é está numa sala de cinema, é o encontro de pessoas para desfrutar de uma produção artística cultural, ou mesmo comercial,  mas no encontro das pessoas”, completa.


Quando as salas de cinema fecham, toda uma cadeia produtiva sente os efeitos.


“Temos uma produção crescente de longas-metragens, filmes brasileiros, a serem lançados e eles ficam se estapeando para entrar numa sala de cinema qualquer, nem precisa ser uma sala de cinema de qualidade reconhecida. Eles querem lançar um filme de qualquer forma. Isso por si só já é um problema, você lançar um filme porque tem um um compromisso com a Ancine. E aí você vai lançar o filme de qualquer forma no circuito exibidor e esse filme vai ser massacrado, pelos lançamentos grandes, milionários estrangeiros”, argumenta Luiz.

A exemplo do Cine São José, uma sala de rua em Afogados da Ingazeira, no Sertão pernambucano, para o coordenador do Cinema da Fundação, o cenário ideal seria de um equilíbrio nas produções exibidas e entre os cinemas.


“As salas comerciais, de redes de multiplex, estão  aí abraçadas com os blockbusters , principalmente de Hollywood, e as salas alternativas que estão dando conta da produção independente autoral. E é lógico que, utopicamente, o ideal seria que os dois tipos de salas conversassem sobre essa programação, deixando ela diversificada para que a produção audiovisual brasileira tivesse uma uma vazão mais digna. Na verdade, até mais do que digna assim, coerente com a qualidade dos filmes”, defende.

Foto: Divulgação/ Thiago Caldas

O panorama se estende ainda para as produções de outras nacionalidades. “Cinema polonês, austríaco, cinema italiano, marroquino, asiático, do Oriente Médio,  tem que ter  um leque  infinito de filmes maravilhosos e acessíveis para a população em geral. Mas eles não chegam se não for pelas salas  alternativas que são muito poucas em quantidade no Brasil”, comenta Luiz.


Além disso, a democratização do acesso à produção cinematográfica é outra função desses equipamentos, uma vez que costumam vender ingressos a preços mais baratos do que os localizados no interior de centros comerciais. “Eles [cinemas de rua] têm essa dupla função de estruturação e  impulsionamento da cadeia produtiva tanto do ponto de vista financeiro quanto do ponto de vista de acesso, para ter mais pessoas e uma camada mais popular da sociedade com acesso a essas obras”, pontua Mannuela.


A professora, que também é realizadora audiovisual, já exibiu no São Luiz vários de seus filmes, e gostaria de ter colocado naquela tela sua mais recente produção, o documentário “Marias” (2024), que conta a história de mulheres que participaram ativamente da política brasileira no último século. 


Para ela, salas como o Cinema São Luiz têm grande impacto no consumo de filmes brasileiros, por exemplo, mas também no o acesso a produtos audiovisuais em geral. “A gente já passou um pouco esse momento de achar que a produção nacional não agrada as pessoas, que elas não vão ver porque o som é ruim, as pessoas já não tem mais essa ideia. Muitas vezes, as pessoas deixam de ver porque não é ofertado a elas ou porque elas não têm a motivação de ir numa sala de cinema, porque além do custo do ingresso tem os custos associados que são o transporte e a alimentação. Quando você vai com a família, aquele custo tríplica ou quadruplica. Então isso fica caro para grande parte da população brasileira”, afirma. 


Agora em nova fase de funcionamento, o Cinema São Luiz volta a contribuir com o aquecimento da difusão audiovisual. Mas para isso a sociedade precisa permanecer atenta e reivindicar o funcionamento adequado do espaço.


"Precisamos ocupar esses lugares, porque como um equipamento público, a gente precisa estar lá, com os nossos filmes e fazer com que mais pessoas frequentem esses lugares", defende Mannuela.


"A reabertura representa toda a glória para os cinéfilos. O medo é o depois, o day after, porque assim a festa é massa, mas tem a rebordosa. Então, agora é torcer para que o governo do estado faça do São Luiz uma festa contínua", declara Luiz.


 

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