Lúcia, Gabriela, Daniel e Kátia partilham memórias que contribuem para a história da ferramenta pública
Texto de Guilherme dos Santos, Leandro Lopes e Luiza Bispo
"Lá dentro é muito amplo. Tem três fileiras: a central e as laterais. Sei também que tem em cima, mas nunca fui. As cadeiras são bem largas, acolchoadas e vermelhas, muito confortáveis. A gente pensa que, por ser um cinema antigo, vamos ficar desconfortáveis, mas não. Na frente, há um palco mais elevado e um papel de parede antigo e marrom, ainda da época da vovó. Tem os vitrais que, antes de começarem os filmes, acendem, e a cortina que se abre quando vai começar a sessão. É coisa de cinema mesmo."
É dessa maneira que a estudante Gabriela Souza, 22 anos, descreve o ambiente de uma das grandes figuras que ilustram o centro do Recife: o Cinema São Luiz. No encontro da Avenida Conde da Boa Vista com a Rua da Aurora, observando o Rio Capibaribe, está este cinema que, desde 1952, quando foi inaugurado, marca a vida de homens, mulheres, crianças, cineastas, diretoras e diretores. Como em um acordo íntimo com o tempo, após dezenas de anos de existência, o espaço emblemático insiste em arrancar olhares, inspirar filmes, ilustrar roupas, despertar nostalgia e, sobretudo, cultivar sentimentos e admiração em mais de uma geração. “Eu ficava encantada com aquilo”, conta Lúcia Costa, 82 anos.
60 anos separam as vidas de Gabriela e sua avó, Lúcia. O Cinema São Luiz, por sua vez, com suas sete décadas, foi capaz de ser um personagem na vida das duas mulheres. A mais velha, sentada em seu sofá diante de fotografias das quatro netas, do único filho e do falecido esposo, deixa a mente passear e vasculha sua memória, que já teima em confundir os caminhos, para traduzir seus tempos de juventude e sua relação com o cinema. Natural do Recife, ela lembra da infância na igreja, dos seis irmãos, das idas à escola e de como começou a frequentar o São Luiz. “Quando já estava adulta, saía do trabalho e ia com minhas amigas”, conta Lúcia, “Achava muito bonito quando entrava ali. Ficava louca”.
Já para a neta, Gabriela, o hábito de frequentar a sala de cinema veio da mãe. “Quando eu tinha 16 anos, estávamos na cidade e então ela me levou ao São Luiz, porque também ia quando era criança”, conta. A partir daí, a semente estava plantada na vida da estudante, que passou a convocar os amigos e a ocupar as cadeiras da sala do cinema sempre que possível.
Já casada e mãe, Lúcia também introduziu o seu filho ao mundo da grande tela. Mesmo cansada do trabalho, ao chegar em casa ela fazia questão de levá-lo a diversos programas na cidade, incluindo assistir filmes no Cinema São Luiz. Em relação ao marido, no entanto, Lúcia conta que o cenário era diferente. “Ele gostava de sossego, não gostava muito de sair, tirando a praia”, explica, “mas eu ia sempre”. Gabriela, com amor, advoga: “Ele era assim, caseiro, mas era o avô xodó”. A avó, ao deixar a memória transportá-la até o dia em que o conheceu, confirma que “foi amor à primeira vista”.
Era esse clima de romance que mais despertava o interesse cinematográfico de Lúcia, que, segundo ela, preferia os filmes românticos. Ela lembra, porém, das “filas quilométricas” em obras como “Os Trapalhões” e “Noviça Rebelde”. “A fila chegava a dobrar, mas mesmo assim todo mundo tinha paciência de esperar”, conta. Para Gabriela, esse enredo também fez parte dos tempos em que frequentava o São Luíz. “Quando fui assistir Bacurau, não conseguimos pegar a seção. Ficamos na fila até conseguir o ingresso”, comenta.
Para além dos filmes mais conhecidos, Gabriela também destaca como o Cinema São Luiz e outros cinemas de rua possibilitam a descoberta de produções audiovisuais dos mais variados gêneros e nacionalidades. “É legal ver filmes que estão fora dos blockbusters e do que passa no shopping”, diz, ao diferenciar também as duas experiências, “não é aquele evento ‘vou no shopping passear e acabo vendo um filme’, não. O evento é a sala do cinema”.
Alocado no meio da confusão de transeuntes, do barulho da cidade e do emaranhado de carros e ônibus que se deslocam ao seu redor, o São Luiz, para Gabi, é capaz de bloquear todo caos externo e transportá-la para um ambiente à parte de tudo isso. “Eu achava aquilo incrível. É silêncio completo”, afirma. Agora, prestes a retornar, finalmente, às suas atividades, após dois longos anos de espera, a sala de cinema que atiçou tantas sensações na jovem a deixa cheia de expectativas para a nova fase. “Tô muito ansiosa. É como se eu voltasse na máquina do tempo”, diz.
Lúcia, por outro lado, devido às limitações naturais trazidas pela idade, não verá o retorno das luzes dos vitrais do Cinema São Luiz. Diferente da neta, no entanto, ela pode se orgulhar de ter vivido as sensações descritas por Gabriela em outros cinemas de ruas que marcaram a história da cidade do Recife, como o Trianon, na Avenida Guararapes, e o Brasil, no bairro do Cordeiro. Porém é o São Luiz que ela coloca como o mais querido. “Era um dos melhores, né? Eu achava aquilo lindo”, responde.
Para os jovens que podem testemunhar a volta do grande alicerce cultural e aproveitar tudo que ele pode oferecer, Lúcia tece conselhos:
“Estudar, progredir, avançar, viver bem. E não pode ser um jovem sem divertimento. Nem triste. Eu acho muito bonita a juventude”
Antes mesmo da profissão
“Para mim, o Cinema São Luiz é a lembrança mais antiga, o espaço que minha memória sempre revisita. Lembro claramente de um filme que assisti lá: 'Os Deuses Devem Estar Loucos', tinha apenas três anos na época”, relata Daniel Bandeira, cineasta recifense. Assim como Lúcia e Gabriela, ele vivenciou essa ferramenta pública em diferentes momentos de sua vida e se sente profundamente conectado ao espaço e às histórias que ele abriga.
Daniel desenha na sua fala que o Cinema São Luiz representava muito mais do que uma simples sala de exibição. Junto com seus pais, ele não apenas assistia a filmes, mas também explorava a cidade ao seu redor. “Eles costumavam me levar ali pela Boa Vista. Eu ia à biblioteca pública ao lado da Rua do 13 de Maio e também frequentava o Veneza e o Trianon. O São Luiz sempre foi um lugar especial para mim, ele é uma referência, um espaço onde me sentia à vontade. Minha vivência está intimamente ligada à minha história, que é marcada pela presença do cinema.”
A trajetória de Bandeira e sua exploração pela cidade mostram como o espaço se tornou uma âncora em sua vida. Segundo ele, essa autonomia “moldou sua identidade”, tanto como cinéfilo quanto como cidadão ativo no município.
Esse amor pelo cinema o levou a iniciar sua trajetória no audiovisual em 2001, durante a qual produziu diversas obras autorais e colaborativas, como “Amigos de Risco”, “Tchau e Benção” (2009), “Sob a Pele” (2011) e “Soledad” (2015). Em 2023, ele lançou "Propriedade", um dos principais filmes de sua carreira. No entanto, ele não teve a oportunidade de estrear a obra no Cinema São Luiz, já que ele estava fechado na época. “Passar um filme nesse cinema tem um peso muito forte para nós, realizadores. Não sou o único a pensar assim; nossa própria noção do que é cinema passa pelo São Luiz, que representa uma relação pessoal e afetiva. Quando finalmente conseguimos fazer um filme, algo tão difícil, a exibição lá faz parte dessa fantasia.”
Sobre o lançamento de "Propriedade", ele expressa uma certa frustração: “Entendo a necessidade do fechamento, mas não saberia dizer se foi por tempo demais. Sei que estava sendo cuidado, pelo menos. O que realmente prejudica é que estamos vivendo um momento super produtivo, e o fechamento do São Luiz impacta essa dinâmica.”
Daniel destaca que, mesmo com o fechamento do Cinema São Luiz, a carência de políticas públicas para atrair o público ainda é outro desafio significativo:
“Antes do fechamento, já havia uma luta intensa para aumentar a frequência do público, para que mais pessoas comparecessem ao São Luiz. Comercialmente, considerando os patamares de público antes do fechamento, talvez isso não fizesse tanta diferença. No entanto, esse aumento é crucial. Se queremos que o São Luiz se torne um espaço representativo, que atraia uma grande audiência e seja comercialmente relevante, é fundamental que ele se mantenha aberto e continue exibindo filmes que criem, assim como criou em mim, uma relação especial com o público.”
O retorno de um velho amigo
Natural do agreste pernambucano, a cineasta Kátia Mesel é a grande homenageada da décima quinta edição do Janela Internacional de Cinema do Recife, que marca a reabertura do emblemático cinema de vitrais floridos. A programação conta com três dias de exibições de seus documentários no São Luiz e no cinema do Museu Homem do Agreste, incluindo o clássico “Recife de Dentro Pra Fora” (1997) em 4k, restaurado pela produtora independente CinemaScópio. Além do curta, outras produções de Mesel serão exibidas pela primeira vez para o público geral, além de uma masterclass aberta ao lado de Kleber Mendonça Filho.
Durante toda a sua trajetória, a diretora esteve entrelaçada à história do próprio audiovisual pernambucano e das manifestações artísticas na cidade, mas sua relação com o São Luiz vai além de feitos profissionais. Em entrevista para a Manguetown, Kátia revisita o cinema como quem reencontra um velho amigo, carregando o peso de décadas de memória e muita história para contar. Eram meados dos anos 60, e o São Luiz transbordava na calçada da Boa Vista com a mesma intensidade das aspirações de uma adolescente em busca de emoções.
Ex-moradora do centro da cidade, ela guarda memórias preciosas do espaço, que acompanhou todas as fases de sua vida como um ambiente de muita troca e cultura. “Eu lembro de começar a frequentá-lo ainda na adolescência. A gente gazeava aula pra assistir aos filmes, era um bom lugar pra ficar de mãos dadas, paquerar, namorar no escurinho. Eu ficava lá dentro entre as sessões, admirando a arquitetura e o local, aquele painel e o vitral das flores era o que mais me encantava”.
Nos anos 70, a experiência se intensificou. “Quando eu era da trupe de Lula Côrtes, essa coisa ainda era mais forte; todos nós íamos para as exibições quase que fantasiados de hippies. Era uma forma de encabeçar nossa não obediência aos parâmetros vigentes”, relembra. Kátia conta que, aos poucos, o São Luiz se tornou um cineclube espontâneo. “Nessa época todo mundo saia em bando, então o pessoal saía da sessão e começava a debater o filme do lado de fora, era um movimento muito orgânico e natural. O São Luiz era isso, fazia parte da vida da gente”. Hoje, homenageada no Janela de Cinema, ela revive essa relação que nunca deixou de colher bons frutos.
As décadas seguintes foram sucedidas por uma carreira profissional intensa e admirável. Kátia Mesel traçou seu caminho como uma das mais importantes cineastas de Pernambuco, acumulando prêmios e homenagens que marcam sua contribuição ao audiovisual a partir de registros documentais que eternizam os mais diversos nuances da cultura local. No próprio São Luiz, no ano de 2018, a cineasta estrelou a Mostra Kátia Mesel: 50 Anos de Audiovisual, no festival Cine PE, onde foi celebrada como ícone da arte cinematográfica pernambucana e um total de oito obras exibidas.
Agora, para Kátia, a reabertura do São Luiz não é apenas uma vitória para a cultura local, mas um passo essencial para a revitalização do centro do Recife:
“O cinema de rua é crucial porque ele promove uma movimentação no entorno, ele permite uma conexão com o centro histórico da cidade pelo resgate das ocupações culturais. É importante para a cidade, para as pessoas e, principalmente, para a juventude”, afirma.
A expectativa que a diretora compartilha com milhares de recifenses é a mesma: que o eterno cinema de rua volte, com a reativação, a cumprir seu papel como um motor de transformação urbana e social, ajudando a resgatar a vitalidade de uma área que sempre foi palco de encontro, formações coletivas e muita vida.
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