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Recife de dentro pra fora: Um ensaio sobre memória e afeto na obra de Kátia Mesel

Foto do escritor: Luíza BispoLuíza Bispo

Atualizado: 22 de out. de 2024


Com um calor que gruda na pele, chuvas repentinas e pontes que conectam histórias, Recife sempre foi um prato cheio para o cinema. É na tela, documentada pelas câmeras Super-8, que a capital pernambucana revela em toda sua complexidade: um lugar onde o saudoso e o contemporâneo se encontram, onde o belo e o escasso convivem, onde cada esquina, cada cruzamento, cada calçada guarda uma história esperando para ser contada.


É como se nas produções cinematográficas daqui a cidade não fosse um mero cenário ou plano de fundo, e sim um ser vivo, que integra a história como qualquer outro bom personagem. Quem entende disso como ninguém é Kátia Mesel, uma das grandes responsáveis por colocar a cidade no mapa cinematográfico e o principal nome feminino quando se trata da sétima arte no Estado.


Dona de uma carreira que atravessa décadas, Kátia é uma verdadeira espécie de ‘cinecronista’ visual. Seu trabalho, retratado em documentários, a maioria no formato de curtas-metragens, desbrava as várias camadas da capital pernambucana, explorando temas como identidade, silenciamento, cultura e memória, com o pioneirismo na abordagem em diversas de suas produções.


Em seu filme de maior notoriedade, “Recife de Dentro pra Fora” (1997), que se desdobra em torno de um poema de João Cabral de Melo Neto, Kátia foi responsável por apresentar uma intimidade  com o rio que não havia sido feita por nenhum cineasta local antes, onde ela conduz os espectadores a um passeio pelos recantos da cidade de uma visão de dentro das margens do Rio Capibaribe, capturando os contrastes do cotidiano, de quem vive e resiste à margem do centro nervoso da cidade.


Em uma conversa despretensiosa que logo se tornou uma entrevista – mal de jornalista – ela conta, de forma modesta, que se reconhece como precursora desse movimento de levar o mangue e os rios ao cinema. “Eu acho que a paisagem humana também é paisagem. O Recife é isso, ele precisa ser saboreado, conquistado, vivenciado”, afirma. Formada em arquitetura e urbanismo pela UFPE, confessa ter sido rapidamente sequestrada pelo audiovisual, paixão cultivada desde seus seis anos quando assistiu o clássico “O Mágico de Oz” (1939) pela primeira vez.


A diretora é conhecida por não documentar o Recife como retratado nos cartões postais ou nas propagandas, mas como a cidade existe nos pequenos detalhes, nas histórias que se desenrolam nas suas margens. O Recife contado por Kátia é plural, caracterizado por ser ora melancólico, ora acolhedor, ora excludente. “O audiovisual local é importantíssimo, pois estratifica e registra a cidade. Recentemente, meu filme ‘Super 8’, de 1972, foi digitalizado, e é incrível assisti-lo agora, porque vários lugares são irreconhecíveis. Essas memórias acendem um registro não apenas de lugares que não existem mais, mas também de profissões. É um ciclo: o registro faz parte da memória, as memórias se eternizam em mídias, e essas mídias trazem sentimentos traiçoeiros. Por isso, é preciso sempre olhar adiante, fora do óbvio, fora da caixinha”, conta.


É na diversidade de temáticas e olhares que o cinema pernambucano se diferencia dos demais. Kátia relembra um episódio em que a Secretaria de Defesa Social da Prefeitura convidou oito cineastas, ela inclusa, para retratar, individualmente, uma campanha de combate ao crack. “Os resultados foram inesquecíveis, todos totalmente diferentes um do outro e, ao mesmo tempo, não tinha nenhum que desse pra jogar fora. Ficaram todos incríveis”, conta. Tal pluralidade criativa, onde cada cineasta imprime sua própria visão e estilo, é um dos pilares que sustentaram a emblemática cena recifense nos anos 80, chamando a atenção do país para um movimento cinematográfico que se desenvolvia de maneira única.

“Cada cineasta tem sua marca, mas cada filme é muito diferente do outro. Todos os cineastas dessa cena de Recife e Olinda estão interessados em desvendar os segredos da cidade de forma densa e fazem isso à sua própria maneira. Eu acho muito bacana essa fidelidade.”

Essa lealdade à diversidade de vozes e perspectivas se torna ainda mais relevante em um mundo saturado de estímulos visuais rápidos e repetitivos, onde TikTok, Instagram e outras mídias nos bombardeiam com informações efêmeras e superficiais.


O cinema pernambucano se destaca exatamente por ir na contramão, comprometido com o que transcende o fugaz e o palpável: a emoção que resiste ao tempo. Para além de Mesel, diretores como Kleber Mendonça, Cláudio Assis, Camilo Cavalcante, Lírio Ferreira e Gabriel Mascaro (e diversos cineastas independentes que estão construindo seus caminhos) trazem à tona, em suas películas, aquilo que o tempo insiste em apagar, que são os locais de afeto, as memórias, a essência de um lugar que vive e resiste, sempre pronto para ser redescoberto na próxima sessão, até porque, como dito por Kátia, é o que emociona que permanece.


Assista "Recife de Dentro pra Fora" abaixo:



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