Com o fechamento temporário do Cinema São Luiz, filmes e cineastas perdem não apenas uma vitrine, mas também um ambiente que conecta arte e comunidade, algo que as plataformas digitais não conseguem substituir plenamente
*Reportagem produzida com colaboração de Letícia Barbosa
O Cinema São Luiz, inaugurado na década de 1950, é um marco da cultura em Recife e um dos poucos cinemas de rua ainda ativos em Pernambuco. Conhecido por sua programação diversificada, o local também é palco de importantes festivais, como o Festival Janela Internacional de Cinema que, em sua 15ª edição, retornou ao São Luiz na reabertura no início de novembro.
A ausência de cinemas de rua nas cidades tem implicações profundas. Esses espaços têm uma importância não só cultural, mas também afetiva, para cineastas e o público em geral. Com o fechamento de quase dois anos do Cinema São Luiz, um dos mais importantes equipamentos culturais da capital pernambucana, muitos curtas e longas-metragens não puderam ser exibidos no espaço, impactando diretamente a produção audiovisual local e os festivais de cinema que o utilizam como um de seus principais palcos.
Esse cenário foi vivido por cineastas independentes, como Cleyton Melo e Pedro Severien, que conversaram com a Manguetown Revista sobre o tema, compartilhando suas experiências e a visão sobre a importância desses espaços para a preservação e o crescimento do cinema na cidade.
Impacto do fechamento para realizadores
Para Cleyton Melo, o São Luiz representa mais do que um local de exibição de filmes. Ele enxerga o cinema de rua como uma experiência única, um espaço cultural que vai além do consumo cinematográfico, criando laços afetivos e comunitários. "O cinema de rua me despertou um sentimento muito forte de querer, que tenha isso em todas as cidades. Ir ao lançamento de ‘Bacurau’ no São Luiz foi uma experiência que eu nunca vou esquecer", relata.
Cleyton também compartilha que seu último filme, “Era Apenas uma Cidade”, que teve sua primeira exibição no Festival de Palmares, não pôde ser exibido no São Luiz devido ao período de fechamento. A obra, que foi finalizada em 2022, só começou a ser rodada com o corte final em 2024. Para o realizador, o fechamento de cinemas como o São Luiz tem um impacto significativo no trabalho de cineastas independentes, que dependem desses espaços para dar visibilidade e alcance às suas produções.
Por outro lado, Pedro Severien, também cineasta e veterano na cena audiovisual pernambucana, compartilhou uma visão similar sobre o papel do Cinema São Luiz e dos cinemas de rua em geral. Para ele, esses espaços são fundamentais para a vitalidade cultural de uma cidade, funcionando como verdadeiros centros de encontro e reflexão sobre o papel da arte no cotidiano das pessoas. Severien, que já exibiu seus primeiros filmes no Cine Teatro do Parque, outro importante cinema de rua da cidade, vê os cinemas públicos como uma forma de democratizar o acesso à cultura, oferecendo uma programação variada e de qualidade. "O cinema de rua é um dispositivo de vitalidade para a cidade, uma forma de torná-la mais democrática e de pensar a cultura como um direito", destaca Severien.
Esse olhar crítico também se volta para a situação do Cine Olinda, que segue fechado há anos, apesar das tentativas de mobilização para sua reabertura. Para Severien, o fechamento prolongado de cinemas como o São Luiz e o Cine Olinda é um reflexo de uma gestão pública falha, que não reconhece o valor transformador desses espaços para a sociedade. "O Cinema São Luiz se tornou um centro de referência para os festivais pernambucanos, mas a falta de manutenção e de orçamento adequado para garantir sua operação coloca em risco sua função como ponto de encontro da cidade", afirma.
Os filmes que mereciam o São Luiz
Ambos cineastas também falaram sobre filmes que gostariam de ter assistido na icônica tela do São Luiz durante o período em que esteve fechado. Cleyton menciona “Quando a Chuva Vem” (2019), curta de animação em stop motion do cineasta Jefferson Batista, de Carpina, na Zona da Mata Norte de Pernambuco,como uma obra que ele adoraria ter visto ali. "É um filme premiado, muito bem feito, e teria sido emocionante assisti-lo no São Luiz. “Retratos Fantasmas” (2023) também seria perfeito para aquele espaço", comenta.
Já Pedro elegeu “O Dia Que Te Conheci” (2023), de André Novais, como um filme que teria um impacto ainda maior no São Luiz. "É uma obra marcada pela simplicidade e pela poética do cotidiano, e acredito que seria lindo vê-lo naquela tela majestosa do São Luís. Esse contraste entre a delicadeza do filme e a grandiosidade da sala de exibição tornaria a experiência ainda mais interessante e bonita", reflete.
Cinema de rua e outras formas de experiência cinematográfica
Para Cleyton, a experiência de assistir e exibir filmes em cinemas de rua não pode ser comparada à de um cinema de shopping. "No cinema de rua, as pessoas vão em grupos, conversam, se conectam. Já no shopping, as pessoas vão mais separadas. O cinema de rua tem um clima diferente, mais acolhedor, que faz parte da experiência. É um espaço dedicado exclusivamente ao cinema. Isso faz toda a diferença", reflete o cineasta.
Durante o período em que o São Luiz ficou fechado, a indústria cinematográfica global passou por uma transformação com o crescimento das plataformas de streaming. Esse fenômeno alterou o comportamento do público e a forma de consumir filmes, impactando também a relação das pessoas com o cinema de rua. "Muitos filmes de streaming têm uma qualidade excelente, mas o que falta é o público se deslocar até os cinemas para viver a experiência de assistir a um filme em um espaço dedicado, como o São Luiz", observa Cleyton.
Severien expressa uma preocupação com o futuro do cinema brasileiro, afirmando que a escassez de investimentos em produções nacionais é uma das grandes barreiras para o crescimento da indústria. "Hoje, o desafio do cinema brasileiro, que não adere somente às lógicas de mercado, é encontrar maneiras inovadoras de manter o contato. Claro que as plataformas de streaming têm seu papel, mas a questão é como articular essas diferentes janelas para amplificar a experiência e o contato com a cidade. Assistir a um filme em casa é uma experiência corporalmente diferente de estar em uma sala, com outras pessoas, em um espaço público. Esse contato com a cidade, com suas complexidades e contradições, é fundamental, pois, ao deixarmos de vivenciar esses lugares, nos afastamos das soluções e da responsabilidade coletiva.", comenta.
O retorno do Cinema São Luiz também é visto como um passo importante para a revalorização dos cinemas de rua na cidade, e uma vitória para a mobilização popular que lutou pela preservação desses espaços. No entanto, como lembra Severien, a luta não termina na reabertura desses cinemas. "É preciso garantir a continuidade desses espaços, com uma programação constante e com o apoio necessário para que eles permaneçam vivos", conclui.
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