Família Ventura leva o cotidiano da periferia do Recife para as telas dos cinemas em documentário dirigido por Victória Álvares e Quentin Delaroche.
Na sexta-feira, 08 de novembro, os pernambucanos puderam assistir, no Cinema São Luiz, a história de uma família. Não de uma qualquer, mas a da família Ventura. Com o toque dos diretores Victória Álvares e Quentin Delaroche, o dia a dia de Cris, uma mulher preta, da periferia do Recife, mais especificamente do bairro do Ibura, Zona Sul da cidade, tornou-se enredo; e uma casa em (re)construção, o cenário de um filme.
Quando Victória e Quentin chegaram ao Ibura para contribuir com o Mãos Solidárias, campanha do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), conheceram Cris Ventura, que também participava ativamente da iniciativa. Os diretores, logo, deixaram o outro projeto que produziam para mais tarde, pois ser a ponte para levar narrativas periféricas para os cinemas de todo o Brasil pareceu mais urgente.
Se isso foi acaso ou ação do destino não vale a pena tentar decifrar. Foi dos efeitos desse encontro que nasceu “Tijolo por Tijolo”, documentário dirigido pela dupla que enxergou a necessidade de compartilhar para o mundo a história da família Ventura.
Juntos, os tijolos se tornam menos pesados
Em meio à Pandemia da Covid-19 e a notícia de que a casa onde moravam precisava ser demolida devido a riscos estruturais, Cris, junto à mãe, ao esposo Albert e os, até então, três filhos, Isaque, Caique e Helena não viram outra saída. Puseram os medos e as incertezas em segundo plano para dar lugar à coragem de reconstruir, tijolo por tijolo, o lar que tiveram de demolir.
A partir de 2021, as portas da casa da família Ventura estavam abertas para receber os diretores e a equipe de filmagem. Ao longo de mais de dois anos de gravação, as câmeras capturaram de perto a rotina da família de Cris e a expressão “tijolo por tijolo” perdeu a literalidade. Tudo que os personagens se propuseram a fazer não se deu por imediato.
“Tijolo por Tijolo” foca nos processos e na desromantização da maternidade e toma como base a quarta gravidez de Cris que não foi planejada. O decorrer do filme reforça que, em muitos casos, o amor exige tempo e pode se fortalecer à medida que a mente se prepara e o bebê evolui. No caso da família Ventura, o amor tomou força quando as paredes da casa junto aos corações se aprontaram para receber a pequena Yasmin.
O filme aborda os direitos reprodutivos e a luta da protagonista, até mesmo no pós-parto, ainda em cima da mesa de cirurgia, para conseguir uma laqueadura. O que reflete as dificuldades de muitas mulheres de ter a própria vontade sobre os próprios corpos respeitada.
Ainda em gravação, o filme captura os momentos das fortes chuvas que devastaram o Recife e, fortemente, o Ibura em 2022. As crises climáticas afetam a população de maneira igual? O documentário comprova que não, enquanto mostra a mobilização de Cris com vários vizinhos para tentar amenizar os efeitos do racismo ambiental que deixou 44 mortos apenas na comunidade de Jardim Monte Verde, também no bairro.
Além disso, há algo que está presente em todos os momentos de “Tijolo por Tijolo” e atravessa a construção da casa, a quarta gavidez e a luta por uma laqueadura pelo SUS: a relação da família Ventura, em especial da Cris, com a internet. O longa evidencia os esforços da família para tirar das redes sociais o próprio sustento e o dinheiro necessário para manter a construção.
As cenas do cotidiano da família gravadas na horizontal pela equipe de filmagem dividem o tempo de duração do filme com os muitos arquivos de vídeo na vertical tiradas da pasta das próprias redes sociais de Cris. Com essa dinâmica, “Tijolo por Tijolo” consegue inserir por completo o público no trabalho da família Ventura com a internet.
De forma natural, a política torna-se a questão central do enredo, diversos temas importantes para refletir o Brasil atual foram trazidos à tona. Os direitos reprodutivos, o direito à moradia, o racismo ambiental, o empreendedorismo se fizeram presentes no cotidiano de Cris e passaram uma das mensagens do documentário: a protagonista não é uma heroína, muito menos uma vítima, é, na verdade, a personificação de diversas outras brasileiras que também têm muita vivência para contar.
No início do filme e da reforma, os membros da família se ajudam carregando os tijolos e, após todos os acontecimentos, eles permanecem, no fim, dividindo o peso dos tijolos.
“Quando que uma família preta, de comunidade, iria se ver, assim, em uma tela?”
O questionamento foi feito pela protagonista de “Tijolo por Tijolo”, Cris Ventura, em uma entrevista exclusiva para a Manguetown Revista e representa a importância de ressignificar a periferia e dar a oportunidade para famílias como a da influenciadora digital, sobretudo, famílias pretas, contarem as histórias de vida pela própria perspectiva e de tornarem o próprio cotidiano o enredo de mais filmes.
“A gente quer que mais pessoas tenham a oportunidade de ver, mas também de ter a própria história contada”, reafirma Cris.
Antes mesmo de “Tijolo por Tijolo”, Cris já trazia o bairro do Ibura nas postagens para as redes sociais e voltava os olhos dos seguidores para o que há de bom na comunidade.
“O Ibura tem a fama de pior bairro, de um dos mais violentos da região e eu gosto de mostrar que não, não é isso. Tem tantos talentos que saem do Ibura e não ganham espaço. Então, eu gosto sempre de trazer isso nas redes sociais”, reforçou.
A protagonista passou a se autodenominar “atriz hollyburense” para reforçar de onde vem e, com esse título, carrega a riqueza cultural e toda a potência que emana das periferias, levando-as para as exibições do longa por todo o Brasil.
“‘Tijolo por Tijolo’ é um filme, acima de tudo, de esperança”
As palavras acima pertencem à diretora pernambucana Victória Álvares, que conversou com a Manguetown Revista após a exibição do documentário “Tijolo por Tijolo” no 15º Festival Janela de Cinema do Recife, que aconteceu no Cinema São Luiz, em 8 de novembro.
Victória comenta o quanto “Tijolo por Tijolo” é o reflexo de diversas outras histórias que não são contadas, não são valorizadas e não têm a significância que representam para o país reconhecidas. Mais ainda, Victória relembra “nosso país é o que é graças à mulheres com a força de vontade Cris”.
As exibições de “Tijolo por Tijolo” por todo o Brasil, os dois ônibus que partiram do Ibura direto para o Cinema São Luiz na exibição do longa revelam o quanto as pessoas se interessam por histórias como as da família Ventura. Diversas pessoas que estavam presentes nunca haviam ido ao cinema antes, mas sentiram a necessidade de ir sofrer, torcer e comemorar junto com a família de Cris.
“As pessoas riem tanto, choram tanto, se emocionam tanto, porque é um filme humano. É um filme que qualquer pessoa que vive vai entender como é passar por um perrengue, chorar, respirar, enlouquecer e ressurgir das cinzas e prosseguir batalhando para construir os seus sonhos”, concluiu.
Da periferia de Pernambuco para todo o Brasil
A estreia de “Tijolo por Tijolo” aconteceu em junho de 2024, na 13ª edição da competição brasileira do Olhar de Cinema - Festival Internacional de Cinema de Curitiba e foi premiado com os títulos de Melhor Direção, Melhor Montagem e o Prêmio da Crítica.
Além disso, marcou presença na 48ª Mostra Internacional de Cinema São Paulo Int’l Film Festival até finalmente ser exibido na terra onde foi produzido, no último dia do 15º Festival Janela de Cinema do Recife, no Cinema São Luiz.
Mas não para por aí, até dezembro de 2024, o documentário será exibido em mais oito festivais de cinema pelo Brasil. Já o lançamento da produção feita pela Revoada Filmes nos cinemas do país está previsto para 2025. O longa promete levar, a mais pessoas, a história da família Ventura e os esforços das famílias periféricas do Brasil de achar, em meio à crises, caminhos para erguer “tijolo por tijolo” e enfrentar as muitas falhas do sistema.
Para mais informações sobre o documentário da diretora pernambucana Victória Álvares e do diretor Quentin Delaroche, acesse o Instagram @tijolo.por.tijolo.filme
E para além do documentário, você pode acompanhar o dia a dia de Cris e de toda a família Ventura pelo perfil @crismantinsventura
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