“Guardião da memória do povo”: Mestre Inácio deixa legado afetivo, cultural e histórico para Pernambuco com o Coco Negros e Negras do Leitão
- Leandro Lopes

- 25 de jul.
- 6 min de leitura
Referência da cultura quilombola no Sertão, deixa um legado de resistência, afeto e ancestralidade
Na última sexta-feira (18), Pernambuco perdeu um de seus grandes mestres da cultura popular. Inácio Pedro da Silva, Patrimônio Vivo do Estado e fundador do grupo Coco Negros e Negras do Leitão, faleceu aos 79 anos em Afogados da Ingazeira, no Alto Sertão do Pajeú. Sua partida aconteceu próximo ao lançamento do álbum intitulado “20 Anos Depois”, no qual o grupo se reúne para interpretar grandes clássicos do repertório.
Mestre Inácio. Imagem: Isabella Brito/ Divulgação
Reconhecida pela Fundação Palmares em 2005 como comunidade remanescente de quilombolas, Leitão da Carapuça, local onde o mestre nasceu e viveu, guarda uma herança ancestral que ecoa nas palmas, versos e toques de ganzá. Mais que um artista, Inácio foi um símbolo de resistência, sabedoria e preservação da memória coletiva do povo quilombola sertanejo.
A Manguetown Revista tem a honra de compartilhar essa história com o respeito e a sensibilidade que ela merece. Em homenagem e registro cultural, reunimos uma série de entrevistas com familiares, amigos e pessoas que tinham no mestre Inácio uma referência inspiradora. Nesta sexta-feira (25), sete dias após seu falecimento, sua memória será reverenciada por todos que encontram esperança e afeto em uma das figuras mais importantes da cultura pernambucana.
O legado do mestre contado por quem o conheceu
Ao longo dos seus 79 anos, o Mestre Inácio não apenas cuidou e preservou a história do Coco, mas também a viveu intensamente. Sua filha Jeane Silva, 44 anos, dançarina do grupo Negros e Negras do Leitão, lembra com carinho a conexão que tinha com o pai. Ela conta que a relação deles ia muito além de pai e filha; eram amigos. “ Ele foi o grande amor da minha vida. Me criou, me educou com muita dedicação. Foi um pai, um esposo, um avô exemplar. Nunca vou esquecer meu herói, meu mestre, meu pai, Inácio Pedro da Silva.”
Jeane sempre teve um olhar sensível para a cultura que seu pai representava. Essa conexão profunda a motivou a também fazer parte do coco. Ela sabe o quanto o legado dele inspira as novas gerações. Para ela, seu pai não era apenas um mestre, mas uma referência viva para todos os jovens da comunidade, um exemplo que ainda hoje os guia.
Para Márcio José da Silva, 40, sobrinho do mestre e integrante do grupo Samba de Coco Cachoeira da Onça, a perda de Inácio representa uma ausência difícil de mensurar, mas sua influência permanece viva. “Eu cresci ouvindo Mestre Inácio cantando com minha mãe nas casas de farinha. Foi assim que tomei gosto pelas danças, pelo samba de coco. Ele foi e será sempre uma referência. Um homem sábio, com uma bagagem de conhecimento incrível. Me inspiro nele, e sou grato a Deus por tudo que aprendi”, diz.
Ele acrescenta que o mestre não só valorizava as tradições, mas também sabia como passar para as novas gerações a importância de manter viva essa cultura. “Mestre Inácio era um verdadeiro guardião da nossa identidade. Ele ensinava com o coração, mostrando que o coco é mais do que uma dança, é nossa história, nossa resistência. Essa herança precisa continuar sendo cultivada, e é isso que eu quero levar adiante.”
Márcio reforça que Mestre Inácio foi essencial para o reconhecimento do grupo Negros e Negras do Leitão como Patrimônio Vivo de Pernambuco, destacando seu papel na valorização da cultura local. “Ele cantava temas regionais, valorizava nossa identidade. Era mais que um artista, era um guardião da memória do povo.”

Em 2023, o Grupo de Coco de Roda Negras e Negros do Leitão da Carapuça foi oficialmente reconhecido como Patrimônio Vivo de Pernambuco, consolidando sua importância cultural e reafirmando o compromisso com a transmissão da tradição. A herança deixada pelo mestre Inácio segue sendo passada às novas gerações, garantindo que a voz e o ritmo do povo quilombola continuem ecoando com força.
A força do legado cultural de Mestre Inácio
Isabella Lumara, 39, produtora cultural e estudante de Cinema e Audiovisual, começou a trabalhar com o mestre Inácio e o grupo Negros e Negras do Leitão no ano passado, por meio de uma parceria com o jornalista e produtor cultural Leo Lemos. Desde então, tem participado de diversos projetos, ensaios, shows e vivências ao lado do grupo. Ela ressalta o aprendizado que essa experiência proporciona e a importância cultural da comunidade quilombola, que, infelizmente, ainda sofre muito apagamento. “É uma comunidade que me sinto feliz em visitar e trabalhar, onde encontro um povo muito acolhedor, que me cativa em cada gesto.”
Para Isabella, trabalhar com o mestre era uma experiência marcada pela serenidade e alegria de viver dele. “Mestre Inácio era de uma serenidade admirável, sempre sorridente, disposto e cheio de alegria. Quando pegava o ganzá para tocar e cantar, sua energia de contentamento rapidamente se espalhava e contagiava quem estivesse perto.” Ela lembra que ele nunca imaginou chegar onde chegou com o grupo, e que o título de Patrimônio Vivo era uma conquista da qual ele se orgulhava profundamente: “Os olhinhos dele brilhavam.”
A produtora cultural destaca ainda o processo de gravação do EP “Isso é Coisa de Cinema”, realizado no bar de Zefa, irmã e vizinha do mestre Inácio. A produção autoral abriu uma nova perspectiva para o grupo, incentivando os jovens a manter viva a cultura, adaptando-a à linguagem de sua geração. “O legado do mestre é deixar uma comunidade inteira imersa no samba de coco e disposta a perpetuar essa tradição.” Para Isabella, perpetuar essa história é um compromisso que continuará a defender com orgulho.

Isabelly Moreira, 32, poetisa, produtora e consultora de políticas públicas e culturais, relembra com afeto o primeiro contato com o Mestre Inácio Pedro. “Conheci o Mestre Inácio logo quando comecei a circular pelos eventos de poesia no Pajeú”, recorda. Aos poucos, nomes como “Inácio do Coco” e “Inácio do Leitão” foram construindo, para ela, a imagem de um homem profundamente enraizado em sua cultura e território. “Meu olhar sempre se direcionou para Inácio como quem, de fato, observava um Mestre.” A aproximação mais íntima veio quando ela foi convidada para coordenar o projeto que resultaria no reconhecimento do grupo como Patrimônio Vivo de Pernambuco.
A poetisa destaca a força simbólica e política da trajetória do Mestre: “A importância de Inácio é imensurável, é ancestral e futurista.” Entre cantigas e toadas, ele narrava a vida sertaneja e suas lutas, sem perder o humor e a alegria que também moldavam seu coco. Para ela, ter participado da construção do dossiê que garantiu o título ao grupo foi um processo trabalhoso, mas cheio de emoção. Ao lado de nomes como Sandrinho Palmeira, Augusto Martins, Léo Lemos e Késsio Berardinelly, Isabelly ajudou a construir uma vitória coletiva. “Fiquei feliz e topei a empreitada sob a condição de que mais gente se somasse ao processo. E conseguimos”, comemora.
O legado que pulsa nas novas gerações
Fernanda Melo, 17, dançarina do grupo Coco Negras e Negros do Leitão, destaca a importância profunda que o mestre Inácio teve para toda a comunidade. “Não só eu, mas todos do grupo reconhecem seu valor, sua essência e sua importância imensa. Mestre Inácio foi um exemplo de resistência, um homem do roçado que nunca desistiu e nunca baixou a cabeça para as dificuldades. Ele transformava os obstáculos em motivo para sorrir e cantar, que era o que ele mais amava. Meu padrinho Inácio foi e é uma figura fundamental para o nosso grupo, sempre uma fonte de inspiração. Ele exalava sabedoria por onde passava, e todos ficavam encantados com sua poesia.”
Mestre Inácio. Imagem: Fernanda Melo/ Divulgação
Desde criança, Fernanda lembra de ver o mestre Inácio sempre envolvido com a cultura, seja cantando coco de roda ou participando das brincadeiras com bacamarte. “Sempre admirei toda aquela sabedoria e alegria. Queria fazer parte daquele universo, daquela energia. Hoje sei que a minha missão é cuidar do que ele nos deixou, preservar a cultura e buscar sempre aperfeiçoar o que fazemos.” Para ela, essa responsabilidade de manter viva a tradição é um compromisso que carrega com orgulho e dedicação.
Fernanda reforça que, mesmo com a ausência física do mestre, seu legado segue forte entre os integrantes do grupo. “Como diz a música: ‘Não deixe o samba morrer, não deixe o coco parar’. Era isso que nosso mestre sempre nos pediu. Embora hoje sintamos falta de alguém muito especial, sabemos que ele amava a vida e jamais abandonaria a brincadeira do coco. No futuro, continuaremos nossa trajetória de luta e resistência, perpetuando o legado dos mestres que já partiram, como o Inácio e o Azinado, valorizando sempre suas histórias e o quanto contribuíram para que o grupo esteja onde está hoje.”
Mestre Inácio Pedro da Silva partiu, mas deixou fincado na terra o ritmo das palmas, o som do ganzá e a força de um povo que resiste através da cultura. Sua presença permanece viva nos cantos da comunidade de Leitão da Carapuça, nos ensaios do grupo e na memória de quem teve a sorte de vê-lo cantar e sorrir. A trajetória de Inácio é também a história de um povo que transforma dureza em poesia, silêncio em batuque e esquecimento em legado.
Como escreveu Isabelly Moreira, com a sensibilidade de quem conviveu de perto com o mestre:
“ Hoje vai cantar no céu Quem tanto cantou no chão Rei do coco em seu palácio Nosso eterno Mestre Inácio Salve o Coco do Leitão!”



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